Valência, o berço da paella
Situada na costa mediterrânea, Valência é um lugar ideal para as férias de verão, principalmente se você deseja saborear seu famoso prato local
Venha e, se quiser, suba a escada circular até o alto da torre da catedral da Plaza de la Virgen. Exige um certo esforço, mas vale a pena. Agora observe as ameias das muralhas e, lá embaixo, a cidade que se espalha ao redor. Veja como ela cresceu. Na área mais próxima, um grupo de ruas forma um círculo que delimita o centro medieval, surgido em torno do antigo mercado mouro. Logo atrás desse círculo estão os palácios em estilos art nouveau e art déco – mais altos, maiores e mais cheios de si – além das residências dos barões de frutas cítricas do fim do século 19 e início do 20, com suas formas extravagantes ou regulares, dependendo do estilo e do período. Mais atrás ainda, há uma faixa de edifícios modernos, menos imponentes, até que seus olhos chegam ao cinturão verde que serpenteia a cidade, passando por onde antes corria o rio Turia. Este foi desviado depois de uma enchente devastadora, em 1957, e seu antigo leito foi transformado em um passeio público que vai do agradável jardim zoológico, em uma extremidade, até a Ciudad de las Artes y las Ciencias, na outra extremidade – onde as extrovertidas criações arquitetônicas de Santiago Calatrava se erguem.
Não é qualquer cidade europeia que se arrisca a adotar uma arquitetura extravagante como fez Valência. Eis uma sequência de prédios para impressionar o mundo: o colossal e branco Palau de la Música; o planetário Hemisfèric, que de certos ângulos parece ser a cabeça do longo esqueleto do Museo de las Ciencias Príncipe Felipe; e o Oceanográfic. Na verdade, é difícil conciliar o mundo antigo e plano com um modernismo tão exuberante. É o oposto do que acontece com o presente gastronômico que Valência oferece ao mundo: a paella.
Todos nós sabemos o que é paella, não? Uma panela grande, redonda e rasa cheia de arroz da cor do girassol, enfeitado com pedaços de frango, camarão, mariscos, carne de porco e sabe-se lá mais o quê. Uma grande declaração de generosidade interiorana. A paella é um dos pratos simbólicos do mundo.
Não, não, não. Isso não é paella. É uma imitação vulgar do verdadeiro prato. Não é assim que o povo faz suas paellas por lá. E eles devem saber, porque a paella foi criada ali, em Valência. Não há muito tempo. Foi chamada por esse nome pela primeira vez em 1840, em um jornal local. Isso representou o fim de um longo processo iniciado quando os mouros governaram essa parte da Espanha, se é que não começou ainda antes. A panela em que o prato é preparado remonta aos romanos, que a conheciam como patera, ou patina, ou padella, dependendo do dicionário.
Vale a pena perder um pouco de tempo com essa panela, porque ela dá pistas sobre como diferenciar uma paella razoável de uma de primeira. Como o mundo sabe, a panela da paella tem um fundo amplo e a lateral baixa – e um leve declive no meio. Esse declive é importante porque ajuda a concentrar o calor do fogo (de preferência, de lenha; gás, por conveniência) no centro da panela. Isso, segundo José Luis García Mascaraque, chef da Escola de Culinária Altaviana, permite que você frite bem o frango e o coelho e os doure antes de empurrá-los para os lados menos quentes da panela para mantê-los aquecidos enquanto continua fazendo a paella.
“Frango e coelho?” O chef Mascaraque está cuidadosamente separando os ingredientes da paella valenciana em sua cozinha de aço limpa, imaculada e reluzente. É um homem amável, com pouco cabelo e muito entusiasmo.
“Frango e coelho”, diz o chef Mascaraque. “Algumas pessoas acrescentam escargot, na temporada do molusco.”
“O quê? Nada de camarão e mariscos?”
“Frango e coelho. Nada de camarão e mariscos na paella valenciana. Camarões você usa na paella de mariscos, com peixe e lagostins.”
“Então, nada de mariscos?”
“Pomos mariscos quando os turistas pedem”, diz o chef Mascaraque com delicadeza, para em seguida voltar à sua tarefa de escolher os ingredientes. Azeite de oliva. Não o extra virgem. Trinta mililitros para cada cem gramas de arroz. Esta é a quantidade certa para uma pessoa. E tem de ser um arroz específico, é claro.
“Bomba ou bahia”, diz o chef Mascaraque, com um sorriso e toda a sua autoridade. “Usamos o bomba em restaurantes e o bahia em casa. O bomba é um arroz superior.” O prato leva ainda tomate, alho, pimentão e açafrão. Alguns restaurantes enganam o cliente e usam corante. O chef Mascaraque condena o corante. Tem de ser açafrão. E quatro tipos de feijão: o rochet, que tem grãos verdes salpicados de vermelho; o ferraura, que tem grãos verdes mas não salpicados de vermelho; o garrafon, um feijão-manteiga fresco e grande; e o tavella, um feijão-manteiga fresco e pequeno. E você pode adicionar corações de alcachofra. E depois, água. Bem, parece simples, não?
“Bahia?”, perguntou Santos Ruiz, diretor do conselho de arroz de Valência, enquanto examinávamos os campos molhados onde é cultivado o único e exclusivo arroz de Valência, na periferia da cidade. “Bomba, sim. Bahia, não. Este já não se cultiva mais. Há o senia, descendente do bahia, mas melhor.” Bem, lá vamos nós. Afinal, as coisas nunca são muito simples quando se trata de comida. Olhamos para a planície. Um trator perseguido por gaivotas está planando a superfície dos campos de arroz, esmagando pilhas de plantas de arroz da temporada passada para adubar e oxigenar a terra.
Os campos estendem-se ao longe, regulares e retangulares, delimitados por muros baixos de barro. À distância, vejo os guindastes do porto indicando o mar; e prédios de apartamentos se erguendo no céu e se estendendo até onde o Palau de la Música de Santiago Calatrava parece buscar o ar limpo do mar Mediterrâneo. É um conjunto curioso.
Os campos de arroz cercam a grande e rasa lagoa de La Albufera, de onde cerca de cem pescadores ainda tiram seu sustento, capturando peixes e dirigindo restaurantes que os servem. Como os brejos abrigam uma incontável quantidade de aves aquáticas nativas e migrantes, além de um parque natural de renome internacional, o equilíbrio entre a agricultura e os ecossistemas tem de ser cuidadosamente supervisionado. Mas os agricultores de arroz e os fiscais da área vivem em harmonia, de acordo com o signor Ruiz. Planta-se arroz em toda parte da Espanha, mas o de Valência é particularmente bom, e protegido pelo status de Denominação de Origem Controlada. É semeado entre abril e maio, quando a temperatura é ideal para a germinação, e colhido entre setembro e outubro – cerca de 120 milhões de quilos. A mim parece um bocado de arroz, e um bocado de paella, já que esse arroz não é muito bom para outras coisas. Veja você, sua principal qualidade é a falta de sabor.
“Você não deve sentir o gosto do arroz”, diz o chef Mascaraque. “O arroz está ali para absorver os sabores da paella.” Ele empurra os pedaços de frango e coelho para a periferia da panela quando estes estão dourados. O ar da cozinha está tomado pelo cheiro das carnes cozinhando. Agora é a hora dos feijões. O garrafon e o tavella são acrescentados inteiros. O rochet e o farraura são despedaçados pelos dedos fortes do chef Mascaraque. “Nunca os corte com faca”, diz ele. “É preciso cozinhá-los em fogo baixo por cinco a dez minutos”.
Como se sabe que eles estão prontos? O chef Mascaraque aponta o dedo para os seus próprios olhos. “Quando você faz isso na maioria dos fins de semana de verão, você sabe. Sabe dizer só de olhar para eles.” Naturalmente. E onde os encontra? “Eles são cultivados aqui perto, na huerta”, revela.
Huerta é a horta ou pomar do mercado. É o termo que os valencianos usam para se referir às ricas terras de fazendas do interior em torno da cidade, de onde vêm as frutas e vegetais vendidos no Mercado Central. E também os peixes, moluscos e carnes.
O Mercado Central é um paraíso para quem gosta de comprar comida, uma magnífica catedral art déco de culto à gastronomia. Situado no coração da cidade, é um lugar descontraído, claro, arejado, com arcos de ferro fundido altivos, sustentando um telhado de vidro e madeira. Embaixo, compradores disciplinados seguem para… onde? Para a seção de peixes, repleta de dourados, sardinhas, moluscos, camarões e merluzas. Mas no caminho podem parar para comprar fatias de presunto na barraca que vende carnes e peças de presunto Ibérica, presunto Pata Negra ou presunto Jabugo, todas elas penduradas enfileiradas sobre o balcão. E ainda pimentão vermelho ou arroz Valenciana em uma das barracas que vendem temperos e legumes. Isso antes de seguirem para as barracas apinhadas de alcachofra, radiccio, favas, ervilhas, tomates e laranjas. E há espaço também para os feijões rochet, ferraura, garrofon e tavella.
Quando os feijões começam a cozinhar, Isabella, uma das alunas da escola de culinária, já amassou o alho e o tomate, fazendo uma polpa que pode ser cozida rapidamente. O chef Mascaraque habilmente acrescenta essa polpa, cujo cheiro agradável penetra no ar. Agora é a hora do pimentão vermelho, que enriquece o sabor e as cores do prato.
“É preciso mexer rapidamente e firmemente para impedir que qualquer coisa queime. Isso seria um desastre.”
As camadas da paella estão sendo feitas de maneira metódica. Agora o chef Mascaraque empurra todos os ingredientes – os pedaços de frango e coelho, os feijões e a polpa de tomate – para o meio da panela, juntos. Ele acrescenta ramos de açafrão, mas não muitos, e despeja água sobre os ingredientes até a panela ficar quase cheia. Em seguida, aumenta o fogo até a mistura começar a ferver. Nuvens de vapor perfumado começam a subir.
“Isso precisa cozinhar por exatos 25 minutos a partir do momento em que começa a ferver.” Ele abaixa o fogo.
E exatamente 20 minutos depois de a panela de paella começar a secar, o chef Mascaraque aumenta o fogo novamente. O líquido diminuiu, tornando-se um caldo, pronto para o arroz. Ele derrama o arroz pelo meio da panela de uma vez só, antes de espalhá-lo por igual.
“Agora é preciso ferver bem por três minutos. Depois, é preciso ferver em fogo brando por nove minutos. E depois é preciso deixar o prato descansar três minutos antes de comer.”
Vejo a paella tomando forma, engrossando enquanto o arroz absorve o caldo. E contemplo, ao fim de 19 minutos, uma autêntica paella valenciana, com uma espessura que não chega a 1,5 cm, exceto onde os pedaços de coelho e frango pairam acima da superfície amarela do arroz, manchada aqui e ali pelos feijões. Parece um leito de rio onde a água subitamente secou; as carnes são como fragmentos sobre o leito seco.
O azeite e a gordura do caldo deixam o arroz brilhando. As carnes conservam seus sabores concentrados no cozimento. Os feijões são macios e amanteigados. Cada elemento está separado, mas todos estão orquestrados para tornar cada bocado completo. Esta é uma culinária superior, não tenha dúvida.
E enquanto percebo cada efeito, há uma repentina agitação em torno da panela. Como aves que mergulham sobre um cardume, os alunos do chef Mascaraque fazem expressões de prazer e abrem sorrisos largos. “Está bom?” “Muito bom.”
Minutos depois, tudo o que resta da paella são grãos de arroz e ossos. “Bueno?” Tremendamente bueno.”
Ah, sim, você pode saborear paellas perfeitamente aceitáveis em restaurantes perfeitamente admiráveis, e eu fiz isso. Houve uma versão pequena, negra, com peixe, no Submarino, no Oceanográfic; uma clássica valenciana no Mateu, em El Palmar, no coração da área de cultivos; a paella marinara no La Pepica, na orla marítima de Valência; uma quarta versão em uma barraca ao lado do Mercado Central; e ainda uma quinta em… bem, você já teve uma ideia. Mas nenhuma delas teve a magia e o deleite da paella do chef Mascaraque.
Pode ser que seja difícil encontrar alguns dos feijões autênticos, mas não custa tentar. Siga as instruções dos pacotes, já que é preciso deixá-los de molho em água e cozinhá-los antes de usá-los. Ou então substitua-os por outros feijões, sugeridos abaixo. E se você só conseguir feijão-manteiga e feijão-verde, que assim seja. Mas aumente as quantidades.
Para quatro pessoas
– 2 colheres de sopa de azeite de oliva
– 700 gramas de frango picado
– 300 gramas de coelho picado
– 100 gramas de feijão garrafon (também chamado de feijão-lima; do contrário, use feijão-manteiga)
– 100 gramas de feijão tavella (ou feijão branco)
– 200 gramas de feijão rochet
– 200 gramas de feijão ferraura (ou feijão verde), tomates (o suficiente para fazer 12 colheres de sopa de polpa, amassando-os)
– 1 colher de sopa de pimentão vermelho
– alguns raminhos de açafrão (ou uma pitada)
– água
– 320 gramas de arroz bomba (se não encontrá-lo, qualquer outro arroz de paella de grãos pequenos)
– fatias de limão, para servir
Aqueça o azeite na panela de paella (ou numa frigideira grande) e acrescente o frango e o coelho. Cozinhe até as carnes dourarem e deixe-as na periferia da panela para mantê-las aquecidas. Acrescente os feijões garrafon e tavella inteiros, esmigalhe os feijões rochet e ferraura com as mãos, acrescente-os e cozinhe em fogo baixo por 5 a 10 minutos. Amasse o alho e o tomate, ponha-os na panela e mexa. Acrescente o pimentão vermelho, mexa com rapidez e firmeza. Empurre todos os ingredientes para o meio da panela, acrescente um pouco de açafrão e despeje água até a panela ficar quase cheia. Deixe ferver e cozinhe em fogo brando por 20 minutos.
Aumente o fogo ao máximo, ponha o arroz no meio da panela e o espalhe por igual. Deixe ferver por 3 minutos, cozinhe em fogo baixo por mais 9 minutos e depois deixe sob calor baixo por 4 minutos. Descanse a paella por 3 minutos antes de servi-la com fatias de limão.
Descubra a rica história moura de Valência e a arquitetura moderna da cidade passeando pelo labirinto de ruas estreitas no antigo centro comercial mouro. Depois, siga seu olfato para encontrar as melhores casas de paella
DICAS BÁSICAS
Como chegar
A Iberia tem voos partindo de São Paulo para Valência, com conexão em Madri. Outra possibilidade é ir com a TAM até Madri e de lá seguir para Valência pela Iberia.
Passeando
Valência tem um sistema integrado de ônibus, bonde e metrô. O bonde é uma opção rápida para chegar à praia e aos restaurantes de paella de Las Arenas.
Leitura adicional
O guia Spain, da Lonely Planet, tem um capítulo sobre Valência. Os órgãos de turismo da Espanha e de Valência têm informações sobre onde se hospedar e onde comer, e ainda sobre atrações da cidade.
TRÊS MANEIRAS DE APROVEITAR
Com economia
COMER
Há uma dúzia de restaurantes em El Palmar, uma vila de pescadores junto à lagoa de La Albufera (14 quilômetros ao sul de Valência), mas o Mateu é a melhor opção para paella (Calle Baldoví 17).
DORMIR
O Hostal Antigua Morellana fica numa rua tranquila, perto do Mercado Central. O prédio do século 18 tem quartos de bom tamanho, a maioria com varanda (€ 60).
PASSEIO
Passeie pela Valência medieval a partir da Plaza de la Virgen. Baixe o capítulo Valencia, da Lonely Planet, para saber mais detalhes.
COMPRE E COZINHE
Compre o cobiçado arroz de paella de Valência e temperos no Mercado Central (Plaza del Mercado; das 7h30 às 14h30, de segunda a sábado).
Com conforto
COMER
Famoso tanto pelos frutos do mar quanto por ter sido frequentado por Ernest Hemingway, o La Pepica é um dos 30 restaurantes na orla de Las Arenas. Peça uma mesa no terraço.
DORMIR
Simpático e acolhedor, o Ad Hoc Monumental oferece conforto e charme entre suas paredes do século 19, além de um esplêndido restaurante (81,97 euros; £70).
PASSEIO
Dentro da Capilla del Santo Cáliz, capela gótica da catedral, veja o que dizem ser o famoso Santo Graal e suba para a torre (€ 5).
COMPRE E COZINHE
Las Anadas de España é uma ótima delicatessen perto da estação de trem. Vende azeitonas em jarros, azeites, picles e vinhos locais.
Com luxo
COMER
Coma no elegante restaurante Submarino, cercado de vida marinha. Suba a escada se não quiser encarar os peixes enquanto estiver comendo (Camino de las Moreras).
DORMIR
Os quartos do moderno hotel-butique Hospes Palau de la Mar são decorados em branco e creme, e cercados por um tranquilo jardim. Há também sauna, jacuzzi e piscina (€ 130).
PASSEIO
A Ciudad de las Artes y las Ciencias abriga maravilhas culturais e arquitetônicas. Inclui aquário, planetário e museu de ciências (bilhete a € 32).
COMPRE E COZINHE
A Escuela de Cocina Eneldo é um lugar para aprender a fazer pratos espanhóis. A culinária é uma disciplina demonstrativa, portanto não se preocupe se você não domina o espanhol. A Altaviana oferece formação em culinária.