Petra Labirinto das Almas

Ainda era o ano de 1812 quando o viajante suíço Jean Louis Burckhardt partiu para explorar a rota entre Damasco e Cairo, no Oriente Médio. Viajava sozinho, a cavalo, vestido como beduíno e sem bagagem para não chamar atenção, e mandava relatos para a coroa britânica – era assim que os europeus se mantinham informados sobre o que se passava no mundo, numa época na qual globalização se fazia gastando sola de sapato. Nesse percurso, o explorador encontrou uma cidade montanhosa e abandonada, escondida atrás de um cânion longo e estreito, sem sinais aparentes de insumos vitais, como água e terras férteis, e ficou impressionado com as formações rochosas irregulares que comparou a montanhas vulcânicas, com a variedade arquitetônica das cerca de 250 sepulturas que conseguiu avistar e com o calor excessivo. Como não encontrou registros escritos, Burckhardt tomou nota do que viu e seguiu viagem, desconfiando de onde estava, mas sem ter certeza.

Há 200 anos, Petra, na Jordânia, era redescoberta por um suíço, que tirou do ostracismo a capital do antigo reino dos nabateus – importante entreposto comercial nos anos que antecederam e sucederam o nascimento de Jesus Cristo. Desde então, a cidade de pedra (em grego, petra) passou a atrair a atenção crescente do mundo, ganhou da Unesco o título de patrimônio da humanidade, virou cenário de cinema e tornou-se o principal ponto turístico do país, um dos mais importantes do Oriente Médio e um dos mais caros do mundo.

São vários os sinais de grandeza, e não é para menos, já que Petra tem monumentos suntuosos. Mas é nas escavações pouco chamativas e nos pequenos detalhes – imperceptíveis para quem não tem um guia por perto ou não estuda o local – que estão as histórias mais interessantes. Lembranças que Burckhardt descobriria se tivesse tido a oportunidade de prosear com os moradores, tomar com eles um chá ou um trago de vinho. Narrativas que dizem respeito à forma como os nabateus lidavam com a morte, com a certeza de que a vida deveria ser bem vivida mesmo depois que o corpo perecia. A morte estava por todos os lados. Ou melhor, as mais variadas formas de eternizar a vida estão por todos os lados.

Apesar de parecerem guarda-roupas, nichos nas paredes internas das cavernas são túmulos nos quais os nabateus depositavam os corpos dos parentes e alguns pertences, assim como faziam os egípcios, porém sem mumificá-los ou sem qualquer outro cuidado com a preservação. Eram apenas enrolados em um pano, já que para eles o importante era cuidar da alma, não da carne.

Sepulcros permanentes e elaborados eram construídos para os mortos, enquanto os vivos residiam em locais temporários e simples. Das cerca de 800 estruturas encontradas nos sítios arqueológicos, quase 90% se inserem na categoria funerária – depois da saída dos nabateus, os beduínos que ali se instalaram intensificaram o uso das cavernas como residências.

“Petra é um grande cemitério, com representações de muitos tipos de enterros”, diz o jordaniano Lawrence Salim, guia turístico no local. Segundo ele, muitos moradores sepultavam os corpos dos parentes dentro de casa porque acreditavam que, dessa forma, eles ainda poderiam interagir com a família – a cova era fechada com uma rocha sob medida e lacrada com cimento para isolar o odor da decomposição.

O que Lawrence nos conta aprendeu oralmente e assim tem sido desde sempre, já que os nabateus legaram poucos escritos – e o que deixaram, o tempo apagou. “A suavidade da pedra (arenito) facilitava o trabalho dos que escavavam as bordas das montanhas, mas, infelizmente, pela mesma razão, é inútil procurar inscrições. Vi vários pontos onde haviam esses registros, mas já sumiram”, lamenta Burckhardt, em seu relato.

Isso leva a divergências, inevitavelmente, como em relação ao Tesouro, monumento mais famoso de Petra. Segundo o guia, foi erguido para Aretas IV, o maior rei dos nabateus, que governou de 9 a.C. a 40 d.C., época na qual a população pode ter chegado a 30 mil pessoas, seu ápice. Mas outras fontes informam que foi erguido pelo rei Aretas III (86 a.C. a 62 a.C.) em memória ao pai, Obodas I.

O futuro do pretérito é o tempo verbal dominante: Petra seria, Petra teria, Petra faria. Portanto, não se apegue às explicações racionais e às certezas. O surpreendente sítio arqueológico pede uma visita com tempo para imaginar o que era viver ali 2 mil anos atrás, tirar suas próprias conclusões, devanear à vontade. É mais divertido. Além do mais, com exceção de alguns vendedores saidinhos, em geral existe um clima relax. Os nativos não costumam colar nos turistas para arrancar trocados a qualquer custo e os visitantes se cumprimentam pelo caminho, como fazem os trilheiros.

Divinas pedras

O famoso Tesouro mostra-se à medida que o visitante se aproxima do fim do Siq, o desfiladeiro de 1,2 quilômetro que leva à cidade antiga. Revela-se aos poucos, através da fenda formada pelos paredões com mais de 150 metros de altura. Revela-se em boa parte de seus ricos detalhes, pois 70% da fachada está preservada até hoje graças a um sistema de canalização no alto da montanha que impede a água da chuva de escorrer pela parte dianteira (isso que é preservar a memória de um soberano!). Tem cerca de 40 metros de altura e, embora não seja imenso como as grandes pirâmides construídas para os faraós egípcios no Cairo, é muito mais rico em detalhes, como águias simbolizando as quatro estações do ano e flores que lembram os 31 dias do mês.

Passando o Tesouro, há outros monumentos elaborados, com pirâmides e escadas. “Eles representam a união da terra com o céu. Ou seja, são como um caminho para a alma ascender ao mundo divino”, explica a historiadora Juliana Caldeira Monzani, mestre em arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, as escadas são assírias e as pirâmides, egípcias, e revelam as diversas influências culturais incorporadas pelos nabateus. Mas quem passa pelo desfiladeiro esperando apenas chegar ao Tesouro e aos grandes sepulcros perde várias histórias interessantes, contidas em detalhes que passam despercebidos. É o caso de um pequeno orifício cavado na rocha, com aproximadamente meio metro de diâmetro e que servia como espécie de oráculo para as viagens – lembre-se de que falamos de um povo nômade e comerciante. Antes de partir, o viajante devia jogar uma pedrinha nesse buraco. Se ela caísse lá dentro e ficasse, era como estampar o visto no passaporte. Se caísse fora, sinal de mau agouro e a viagem podia até ser adiada, se não fosse urgente.

Há também o altar para casamentos que, para o visitante distraído, parece apenas duas cavidades simétricas na parede do Siq – toaletes masculino e feminino, talvez. Mas era o lugar onde noivo e noiva entravam e davam as mãos para celebrar o matrimônio sob a bênção dos deuses Dushara e Al-Uzza, esculpidos do lado oposto – também discretos, como em um quadro em baixo-relevo. Existem ainda os pés de beduínos esculpidos ao lado de patas de camelos, prováveis representações de caravanas. É como se as pedras em si tivessem algo de divino para os nabateus, e boa parte dessa devoção girasse em torno das andanças desse povo.

A fúria dos romanos

Os nabateus construíram um reino próspero que ia de Damasco, hoje capital da Síria, à Península do Sinai, no Egito, controlando a região entre os mares Morto e Vermelho. Petra era a capital. Roma cresceu os olhos. Os nabateus até resistiram por algum tempo e essa é outra passagem cuja magnitude só pode ser compreendida contemplando o desfiladeiro.

Olhe para o alto e imagine uma legião de crianças atacando os soldados romanos com pedras, de um lugar onde eles não tinham como chegar, nem revidar. “Quando se pensa em segurança, a posição dessa cidade foi bem escolhida, já que poucas centenas de homens poderiam defender a entrada contra um grande exército”, escreveu o suíço Burckhardt. Para ele, só isso explica os nabateus terem optado por um local tão abafado, onde as altas paredes de rochas pareciam reter o calor do sol e inviabilizar a passagem do vento – quando ele esteve lá, era agosto, auge do verão no Hemisfério Norte.

Voltando ao desfiladeiro, olhe para a base e veja os dutos construídos para levar água das cisternas até a cidade, lá embaixo – com 15 recipientes ao longo da extensão que funcionavam como filtros, segurando os sedimentos. Depois imagine que esses dutos, hoje abertos e meramente decorativos, como canaletas gigantes de uma pista de boliche, eram cobertos com uma espécie de cimento na mesma cor da rocha, de modo que o inimigo não fazia ideia de que ali dentro passava água, usada para beber e irrigar.

Os romanos, quando bloquearam a entrada do cânion no intuito de sufocar a população e obrigá-la a sair em busca de insumos básicos, não entenderam como a vida continuou a fluir normalmente lá embaixo. Não sabiam que a água continuava a escorrer desfiladeiro abaixo. Um dia, o segredo foi descoberto, a passagem de água interrompida e os nabateus sucumbiram. No ano 106 d.C., a cidade foi transformada em província romana.

O abastecimento de água é o verdadeiro tesouro dos nabateus, já que o monumento que leva esse nome não guardava tesouro nenhum. Segundo a lenda, um faraó egípcio teria escondido ali riquezas do Egito que poderiam estar no interior da rocha, o que explicaria as marcas de bala na parede. Balas que teriam partido de armas de fogo britânicas, ou beduínas… Vai saber, cada um conta de um jeito… Tradição oral, lembra? Quem conta um conto tem por hábito aumentar um ponto. É como a lembrança de que os nabateus lavavam os corpos com vinho antes do sepultamento. Uns dizem que era por causa do álcool, que servia para limpar e conservar. Outros, para purificar dos pecados. Quem sabe, as duas coisas.

Petra, com sua coloração predominantemente rosada, é um lugar para o visitante admirar as paredes peculiares, com estrias onduladas, em tons que vão do preto ao vermelho, passando pelo cinza, pelo terracota, eventualmente formando desenhos que lembram aves e outros animais. São como papéis de parede de extremo bom gosto, obras da natureza surgidas graças aos mais de 30 tipos de minerais presentes nessa montanha, segundo ensina nosso guia.

Toda essa interação é possível porque, nos anos 1990, os beduínos que ainda moravam em cavernas foram convidados pelo governo a se retirar para que nós, que pagamos € 50 ou mais por um ingresso, possamos bisbilhotar tranquilamente os vestígios dos antepassados, sem ter de atrapalhar a vida cotidiana da população. Desde então os beduínos moram em Little Petra, povoado vizinho, e trabalham na cidade histórica. Vivem do turismo, vendendo souvenirs e transportando turistas em charretes e lombos de cavalos, camelos e burros. Vivem da vida eterna dos ancestrais.

• Com informações da historiadora Juliana Caldeira Monzani, mestre em Arqueologia pela USP, além de trechos do relato de Jean Louis Burckhardt, cuja íntegra tem o equivalente a cem páginas e está disponível no site da Universidade de Adelaide (Austrália).

PETRA: COMO CHEGAR

Com nome charmoso, Petra é um recanto repleto de histórias fascinantes. Para explorá-la, reserve um pouco de disposição e boa dose de curiosidade

ESSENCIAIS

Como chegar

As companhias TAM e Emirates disponibilizam passagens para Amã, a capital da Jordânia, a partir de US$ 1.300, saindo de São Paulo e com escala em Frankfurt ou Dubai. Da cidade para Petra, são duas horas de carro e operadores locais oferecem passeios que saem de madrugada e voltam à noite.

Clima

Em todo lugar desértico, a temperatura varia de alguns poucos graus negativos a quase 50 positivos. Portanto, evite ir no inverno (início do ano) e no verão (meio do ano). Se for nos dias frios, agasalhe-se bem e leve uma caneca térmica com chá quente, se possível. No verão, não se esqueça da água, do chapéu e dos óculos escuros. Além da temperatura inconveniente, no inverno há o risco de ficar parado na estrada em caso de geada ou nevasca e, assim, perder o dia. Em qualquer época do ano, use tênis confortável com solado resistente.

Para saber mais

Confira dicas de hospedagem e alimentação nos guias Jordan (R$ 48) e Middle East (R$ 60,50), da Lonely Planet. Ou explore a página sobre Petra da Wikitravel e o site oficial de turismo da Jordânia.

DEZ DICAS PARA APROVEITAR PETRA

1. O ingresso é caro e não há meia entrada: € 50. Quem quer ficar mais tempo paga quase o mesmo: € 55 por dois dias e € 60 por três. Dividir a visita em duas diárias vale a pena para qualquer um que queira conhecer bem o local sem se cansar tanto e sem precisar recorrer a charretes e cavalos. Afinal, são 34 quilômetros quadrados de sítio arqueológico.

2. No primeiro dia, é legal contratar um guia e explorar o Siq, o Tesouro e o que seria o centro da cidade, onde ficam o teatro e túmulos grandiosos. É uma boa maneira de conhecer mais sobre os costumes dos antigos moradores. No segundo, vá direto aos monumentos mais distantes e descobertos recentemente, como o Mosteiro Ab-Deir.

3. Quem não tiver muito tempo, reserve o dia todo e leve um lanchinho para tapear a fome, já que na cidade antiga não há lugares para comer. Jante na cidade nova e durma em algum hotel ali mesmo, pois as pernas pedirão arrego.

4. Se quiser um guia que fale português, procure o Lawrence Salim (tel. +962 795 021688), um jordaniano competente e divertido. Se preferir fechar com alguma operadora, a Home Tour oferece pacotes exclusivos e a Kangaroo tem roteiros de 7 dias.

5. Uma boa opção para comer é o Al Qantarah, restaurante que oferece bufê por 15 dinares (cerca de € 15), com opções variadas e sobremesa – experimente a harissa, pãozinho doce de semolina, crocante por fora, úmido por dentro e adoçado na medida certa. A poucos passos do sítio arqueológico, há outras opções para quem quiser caminhar menos.

6. A hospedagem é para todos os bolsos. O Taybet Zaman Hotel and Resort é confortável e tem chalés decorados em estilo beduíno. Há ainda duas unidades da rede suíça Mövenpick, uma bem na entrada da cidade antiga e outra a 10 minutos de carro, num castelo com vista privilegiada.

7. É possível encontrar souvenires por todo lado. Portanto, não se afobe para comprar e capriche na pechincha. Em apenas três minutos de conversa, nossa reportagem comprou por US$ 3 uma imagem do Tesouro feita de osso de camelo, que a princípio valia dez dinares, ou seja, US$ 13, quatro vezes mais. Todos os lugares aceitam cartão de crédito.

8. Vendedores oferecem âmbar, mirra e incenso como se fossem os presentes oferecidos pelos reis magos a Jesus, quando na verdade foram ouro, mirra e incenso. Cuidado também com as supostas moedas antigas romanas e nabateias. Algumas são falsas. E as verdadeiras podem ter sido extraídas ilegalmente, prejudicando a exploração arqueológica.

9. Ao sul de Petra, há duas boas pedidas para quem deseja conhecer melhor a Jordânia: Aqaba e Wadi Rum – o primeiro para tomar banho de sol no Mar Vermelho e o segundo o vale de onde o inglês T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia, acompanhou a revolta árabe durante a Primeira Guerra Mundial. O vale foi cenário de vários filmes, inclusive Lawrence da Arábia, de David Lean.

10. Por falar em cinema, Petra foi cenário de Indiana Jones e a Última Cruzada, estrelado por Harrison Ford.

Roberto Seba
Essa tumba, conhecida como Urn, foi construída pelos nabateus entre os anos 40 d.C. e 72. d.C., segundo os arqueólogos
Essa tumba, conhecida como Urn, foi construída pelos nabateus entre os anos 40 d.C. e 72. d.C., segundo os arqueólogos
Ainda era o ano de 1812 quando o viajante suíço Jean Louis Burckhardt partiu para explorar a rota entre Damasco e Cairo, no Oriente Médio. Viajava sozinho, a cavalo, vestido como beduíno e sem bagagem para não chamar atenção, e mandava relatos para a coroa britânica – era assim que os europeus se mantinham informados sobre o que se passava no mundo, numa época na qual globalização se fazia gastando sola de sapato. Nesse percurso, o explorador encontrou uma cidade montanhosa e abandonada, escondida atrás de um cânion longo e estreito, sem sinais aparentes de insumos vitais, como água e terras férteis, e ficou impressionado com as formações rochosas irregulares que comparou a montanhas vulcânicas, com a variedade arquitetônica das cerca de 250 sepulturas que conseguiu avistar e com o calor excessivo. Como não encontrou registros escritos, Burckhardt tomou nota do que viu e seguiu viagem, desconfiando de onde estava, mas sem ter certeza.

Há 200 anos, Petra, na Jordânia, era redescoberta por um suíço, que tirou do ostracismo a capital do antigo reino dos nabateus – importante entreposto comercial nos anos que antecederam e sucederam o nascimento de Jesus Cristo. Desde então, a cidade de pedra (em grego, petra) passou a atrair a atenção crescente do mundo, ganhou da Unesco o título de patrimônio da humanidade, virou cenário de cinema e tornou-se o principal ponto turístico do país, um dos mais importantes do Oriente Médio e um dos mais caros do mundo.

São vários os sinais de grandeza, e não é para menos, já que Petra tem monumentos suntuosos. Mas é nas escavações pouco chamativas e nos pequenos detalhes – imperceptíveis para quem não tem um guia por perto ou não estuda o local – que estão as histórias mais interessantes. Lembranças que Burckhardt descobriria se tivesse tido a oportunidade de prosear com os moradores, tomar com eles um chá ou um trago de vinho. Narrativas que dizem respeito à forma como os nabateus lidavam com a morte, com a certeza de que a vida deveria ser bem vivida mesmo depois que o corpo perecia. A morte estava por todos os lados. Ou melhor, as mais variadas formas de eternizar a vida estão por todos os lados.

Apesar de parecerem guarda-roupas, nichos nas paredes internas das cavernas são túmulos nos quais os nabateus depositavam os corpos dos parentes e alguns pertences, assim como faziam os egípcios, porém sem mumificá-los ou sem qualquer outro cuidado com a preservação. Eram apenas enrolados em um pano, já que para eles o importante era cuidar da alma, não da carne.

Sepulcros permanentes e elaborados eram construídos para os mortos, enquanto os vivos residiam em locais temporários e simples. Das cerca de 800 estruturas encontradas nos sítios arqueológicos, quase 90% se inserem na categoria funerária – depois da saída dos nabateus, os beduínos que ali se instalaram intensificaram o uso das cavernas como residências.

“Petra é um grande cemitério, com representações de muitos tipos de enterros”, diz o jordaniano Lawrence Salim, guia turístico no local. Segundo ele, muitos moradores sepultavam os corpos dos parentes dentro de casa porque acreditavam que, dessa forma, eles ainda poderiam interagir com a família – a cova era fechada com uma rocha sob medida e lacrada com cimento para isolar o odor da decomposição.

O que Lawrence nos conta aprendeu oralmente e assim tem sido desde sempre, já que os nabateus legaram poucos escritos – e o que deixaram, o tempo apagou. “A suavidade da pedra (arenito) facilitava o trabalho dos que escavavam as bordas das montanhas, mas, infelizmente, pela mesma razão, é inútil procurar inscrições. Vi vários pontos onde haviam esses registros, mas já sumiram”, lamenta Burckhardt, em seu relato.

Isso leva a divergências, inevitavelmente, como em relação ao Tesouro, monumento mais famoso de Petra. Segundo o guia, foi erguido para Aretas IV, o maior rei dos nabateus, que governou de 9 a.C. a 40 d.C., época na qual a população pode ter chegado a 30 mil pessoas, seu ápice. Mas outras fontes informam que foi erguido pelo rei Aretas III (86 a.C. a 62 a.C.) em memória ao pai, Obodas I.

O futuro do pretérito é o tempo verbal dominante: Petra seria, Petra teria, Petra faria. Portanto, não se apegue às explicações racionais e às certezas. O surpreendente sítio arqueológico pede uma visita com tempo para imaginar o que era viver ali 2 mil anos atrás, tirar suas próprias conclusões, devanear à vontade. É mais divertido. Além do mais, com exceção de alguns vendedores saidinhos, em geral existe um clima relax. Os nativos não costumam colar nos turistas para arrancar trocados a qualquer custo e os visitantes se cumprimentam pelo caminho, como fazem os trilheiros.

Divinas pedras

O famoso Tesouro mostra-se à medida que o visitante se aproxima do fim do Siq, o desfiladeiro de 1,2 quilômetro que leva à cidade antiga. Revela-se aos poucos, através da fenda formada pelos paredões com mais de 150 metros de altura. Revela-se em boa parte de seus ricos detalhes, pois 70% da fachada está preservada até hoje graças a um sistema de canalização no alto da montanha que impede a água da chuva de escorrer pela parte dianteira (isso que é preservar a memória de um soberano!). Tem cerca de 40 metros de altura e, embora não seja imenso como as grandes pirâmides construídas para os faraós egípcios no Cairo, é muito mais rico em detalhes, como águias simbolizando as quatro estações do ano e flores que lembram os 31 dias do mês.

+ Veja o álbum de fotos de Petra
Roberto Seba
Beduínos ganham vida com transporte e artesanato
Beduínos ganham vida com transporte e artesanato
Passando o Tesouro, há outros monumentos elaborados, com pirâmides e escadas. “Eles representam a união da terra com o céu. Ou seja, são como um caminho para a alma ascender ao mundo divino”, explica a historiadora Juliana Caldeira Monzani, mestre em arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, as escadas são assírias e as pirâmides, egípcias, e revelam as diversas influências culturais incorporadas pelos nabateus. Mas quem passa pelo desfiladeiro esperando apenas chegar ao Tesouro e aos grandes sepulcros perde várias histórias interessantes, contidas em detalhes que passam despercebidos. É o caso de um pequeno orifício cavado na rocha, com aproximadamente meio metro de diâmetro e que servia como espécie de oráculo para as viagens – lembre-se de que falamos de um povo nômade e comerciante. Antes de partir, o viajante devia jogar uma pedrinha nesse buraco. Se ela caísse lá dentro e ficasse, era como estampar o visto no passaporte. Se caísse fora, sinal de mau agouro e a viagem podia até ser adiada, se não fosse urgente.

Há também o altar para casamentos que, para o visitante distraído, parece apenas duas cavidades simétricas na parede do Siq – toaletes masculino e feminino, talvez. Mas era o lugar onde noivo e noiva entravam e davam as mãos para celebrar o matrimônio sob a bênção dos deuses Dushara e Al-Uzza, esculpidos do lado oposto – também discretos, como em um quadro em baixo-relevo. Existem ainda os pés de beduínos esculpidos ao lado de patas de camelos, prováveis representações de caravanas. É como se as pedras em si tivessem algo de divino para os nabateus, e boa parte dessa devoção girasse em torno das andanças desse povo.

A fúria dos romanos

Os nabateus construíram um reino próspero que ia de Damasco, hoje capital da Síria, à Península do Sinai, no Egito, controlando a região entre os mares Morto e Vermelho. Petra era a capital. Roma cresceu os olhos. Os nabateus até resistiram por algum tempo e essa é outra passagem cuja magnitude só pode ser compreendida contemplando o desfiladeiro.

Olhe para o alto e imagine uma legião de crianças atacando os soldados romanos com pedras, de um lugar onde eles não tinham como chegar, nem revidar. “Quando se pensa em segurança, a posição dessa cidade foi bem escolhida, já que poucas centenas de homens poderiam defender a entrada contra um grande exército”, escreveu o suíço Burckhardt. Para ele, só isso explica os nabateus terem optado por um local tão abafado, onde as altas paredes de rochas pareciam reter o calor do sol e inviabilizar a passagem do vento – quando ele esteve lá, era agosto, auge do verão no Hemisfério Norte.

Voltando ao desfiladeiro, olhe para a base e veja os dutos construídos para levar água das cisternas até a cidade, lá embaixo – com 15 recipientes ao longo da extensão que funcionavam como filtros, segurando os sedimentos. Depois imagine que esses dutos, hoje abertos e meramente decorativos, como canaletas gigantes de uma pista de boliche, eram cobertos com uma espécie de cimento na mesma cor da rocha, de modo que o inimigo não fazia ideia de que ali dentro passava água, usada para beber e irrigar.

Os romanos, quando bloquearam a entrada do cânion no intuito de sufocar a população e obrigá-la a sair em busca de insumos básicos, não entenderam como a vida continuou a fluir normalmente lá embaixo. Não sabiam que a água continuava a escorrer desfiladeiro abaixo. Um dia, o segredo foi descoberto, a passagem de água interrompida e os nabateus sucumbiram. No ano 106 d.C., a cidade foi transformada em província romana.

O abastecimento de água é o verdadeiro tesouro dos nabateus, já que o monumento que leva esse nome não guardava tesouro nenhum. Segundo a lenda, um faraó egípcio teria escondido ali riquezas do Egito que poderiam estar no interior da rocha, o que explicaria as marcas de bala na parede. Balas que teriam partido de armas de fogo britânicas, ou beduínas… Vai saber, cada um conta de um jeito… Tradição oral, lembra? Quem conta um conto tem por hábito aumentar um ponto. É como a lembrança de que os nabateus lavavam os corpos com vinho antes do sepultamento. Uns dizem que era por causa do álcool, que servia para limpar e conservar. Outros, para purificar dos pecados. Quem sabe, as duas coisas.

Petra, com sua coloração predominantemente rosada, é um lugar para o visitante admirar as paredes peculiares, com estrias onduladas, em tons que vão do preto ao vermelho, passando pelo cinza, pelo terracota, eventualmente formando desenhos que lembram aves e outros animais. São como papéis de parede de extremo bom gosto, obras da natureza surgidas graças aos mais de 30 tipos de minerais presentes nessa montanha, segundo ensina nosso guia.

Toda essa interação é possível porque, nos anos 1990, os beduínos que ainda moravam em cavernas foram convidados pelo governo a se retirar para que nós, que pagamos € 50 ou mais por um ingresso, possamos bisbilhotar tranquilamente os vestígios dos antepassados, sem ter de atrapalhar a vida cotidiana da população. Desde então os beduínos moram em Little Petra, povoado vizinho, e trabalham na cidade histórica. Vivem do turismo, vendendo souvenirs e transportando turistas em charretes e lombos de cavalos, camelos e burros. Vivem da vida eterna dos ancestrais.

• Com informações da historiadora Juliana Caldeira Monzani, mestre em Arqueologia pela USP, além de trechos do relato de Jean Louis Burckhardt, cuja íntegra tem o equivalente a cem páginas e está disponível no site da Universidade de Adelaide (Austrália).

+ Veja o álbum de fotos de Petra
Roberto Seba
Para ver os diversos panoramas, é preciso ter tempo hábil e pique para subir muitos degraus
Para ver os diversos panoramas, é preciso ter tempo hábil e pique para subir muitos degraus
PETRA: COMO CHEGAR

Com nome charmoso, Petra é um recanto repleto de histórias fascinantes. Para explorá-la, reserve um pouco de disposição e boa dose de curiosidade

ESSENCIAIS

Como chegar

As companhias TAM e Emirates disponibilizam passagens para Amã, a capital da Jordânia, a partir de US$ 1.300, saindo de São Paulo e com escala em Frankfurt ou Dubai. Da cidade para Petra, são duas horas de carro e operadores locais oferecem passeios que saem de madrugada e voltam à noite.

Clima

Em todo lugar desértico, a temperatura varia de alguns poucos graus negativos a quase 50 positivos. Portanto, evite ir no inverno (início do ano) e no verão (meio do ano). Se for nos dias frios, agasalhe-se bem e leve uma caneca térmica com chá quente, se possível. No verão, não se esqueça da água, do chapéu e dos óculos escuros. Além da temperatura inconveniente, no inverno há o risco de ficar parado na estrada em caso de geada ou nevasca e, assim, perder o dia. Em qualquer época do ano, use tênis confortável com solado resistente.

Para saber mais

Confira dicas de hospedagem e alimentação nos guias Jordan (R$ 48) e Middle East (R$ 60,50), da Lonely Planet. Ou explore a página sobre Petra da Wikitravel e o site oficial de turismo da Jordânia.

DEZ DICAS PARA APROVEITAR PETRA

1. O ingresso é caro e não há meia entrada: € 50. Quem quer ficar mais tempo paga quase o mesmo: € 55 por dois dias e € 60 por três. Dividir a visita em duas diárias vale a pena para qualquer um que queira conhecer bem o local sem se cansar tanto e sem precisar recorrer a charretes e cavalos. Afinal, são 34 quilômetros quadrados de sítio arqueológico.

2. No primeiro dia, é legal contratar um guia e explorar o Siq, o Tesouro e o que seria o centro da cidade, onde ficam o teatro e túmulos grandiosos. É uma boa maneira de conhecer mais sobre os costumes dos antigos moradores. No segundo, vá direto aos monumentos mais distantes e descobertos recentemente, como o Mosteiro Ab-Deir.

3. Quem não tiver muito tempo, reserve o dia todo e leve um lanchinho para tapear a fome, já que na cidade antiga não há lugares para comer. Jante na cidade nova e durma em algum hotel ali mesmo, pois as pernas pedirão arrego.

4. Se quiser um guia que fale português, procure o Lawrence Salim (tel. +962 795 021688), um jordaniano competente e divertido. Se preferir fechar com alguma operadora, a Home Tour oferece pacotes exclusivos e a Kangaroo tem roteiros de 7 dias.

5. Uma boa opção para comer é o Al Qantarah, restaurante que oferece bufê por 15 dinares (cerca de € 15), com opções variadas e sobremesa – experimente a harissa, pãozinho doce de semolina, crocante por fora, úmido por dentro e adoçado na medida certa. A poucos passos do sítio arqueológico, há outras opções para quem quiser caminhar menos.

6. A hospedagem é para todos os bolsos. O Taybet Zaman Hotel and Resort é confortável e tem chalés decorados em estilo beduíno. Há ainda duas unidades da rede suíça Mövenpick, uma bem na entrada da cidade antiga e outra a 10 minutos de carro, num castelo com vista privilegiada.

7. É possível encontrar souvenires por todo lado. Portanto, não se afobe para comprar e capriche na pechincha. Em apenas três minutos de conversa, nossa reportagem comprou por US$ 3 uma imagem do Tesouro feita de osso de camelo, que a princípio valia dez dinares, ou seja, US$ 13, quatro vezes mais. Todos os lugares aceitam cartão de crédito.

8. Vendedores oferecem âmbar, mirra e incenso como se fossem os presentes oferecidos pelos reis magos a Jesus, quando na verdade foram ouro, mirra e incenso. Cuidado também com as supostas moedas antigas romanas e nabateias. Algumas são falsas. E as verdadeiras podem ter sido extraídas ilegalmente, prejudicando a exploração arqueológica.

9. Ao sul de Petra, há duas boas pedidas para quem deseja conhecer melhor a Jordânia: Aqaba e Wadi Rum – o primeiro para tomar banho de sol no Mar Vermelho e o segundo o vale de onde o inglês T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia, acompanhou a revolta árabe durante a Primeira Guerra Mundial. O vale foi cenário de vários filmes, inclusive Lawrence da Arábia, de David Lean.

10. Por falar em cinema, Petra foi cenário de Indiana Jones e a Última Cruzada, estrelado por Harrison Ford.

+ Veja o álbum de fotos de Petra
Roberto Seba

Originários do Iêmen, os nabateus teriam se estabelecido na Jordânia após cruzar a Arábia Saudita em busca de um local seguro e lucrativo para o comércio, onde entraram em contato com vários povos. Negociavam especiarias, incenso… Incenso, aliás, não era usado apenas para perfumar ambientes e disfarçar cheiro de cigarro, como hoje em dia. Era item essencial em cerimônias funerárias e sacrifícios de animais, especialmente cordeiros, realizados em um lugar bastante alto, o mais próximo do céu.

Era misturado com sangue – para muitos povos de origem semita, como os nabateus, o sangue simbolizava a vida e o elo com as divindades – e queimado em reverência aos deuses. Já a carne do cordeiro era oferecida aos mais necessitados em rituais que aconteciam no teatro da cidade, cuja capacidade atingia 7 mil pessoas e continua lá, todo esculpido na rocha.