Ilha de Páscoa, muito mais que um segredo

Ilha de Páscoa, muito mais que um segredo
O mistério dos moais e a sua energia não são as únicas atrações da mais remota ilha habitada do mundo

Os 15 moais perfilados no `ahu
Os 15 moais perfilados no `ahu” de Tongariki são os mais impressionantes da ilhaCerca de 5 mil cavalos caminham soltos pela Ilha de Páscoa. Pastam entre as pedras, roçam seu dorso nos moais e atravessam, sem cerimônia, as duas estradas asfaltadas que ligam os extremos do pequeno triângulo de formação vulcânica no meio do oceano Pacífico.

Segundo algumas fontes, os equinos são a maior população da ilha, superando, em algumas centenas de cabeças, a quantidade de humanos. Outros garantem, porém, que Páscoa já tem 5.700 habitantes, dos quais 3 mil são brancos importados e apenas 2.700 legítimos rapanui, descendentes dos polinésios que teriam avistado e ocupado a ilha entre os anos 300 e 400 da Era Cristã.

Como se observa, os números são deliciosamente imprecisos na ilha mais remota do planeta, cujos vizinhos mais próximos estão no Chile (a 3.700 quilômetros de distância) e no longínquo arquipélago de Pitcairn (2 mil quilômetros a noroeste). Nem mesmo a quantidade de moais espalhados por Páscoa escapa de divergências. Para os que contam todos os que supostamente foram feitos, incluindo os surrupiados por naus estrangeiras, a estimativa é a de que chegou a 900 a quantidade de grandes estátuas de pedra vulcânica. Já os que se referem apenas a tudo o que veem na ilha, incluindo os moais derrubados, os que permanecem inacabados na “pedreira” de Rano Raraku e os que foram reerguidos tornando-se ícones de Páscoa, enumeram 400 peças. De pé mesmo, altivos sobre seus altares de veneração chamados ahus, restam apenas pouco mais de 40.

Não os convido a checar esses números porque a acurácia aritmética não tem a menor importância para os rapanui, exceto, é claro, na hora em que você tiver de acertar as contas em um restaurante ou em uma loja e descobrir que tudo, por aqui, custa o dobro do que vale no Chile continental, a quem a ilha pertence politicamente. Mas essas são questões comezinhas inerentes à lonjura. Importa mesmo é saber que Páscoa não é da matemática, mas da metafísica. Não é de resultados, mas de dúvidas. E, ainda que feita de pedra, não é concreta, mas etérea.

Quando você vier até aqui, experimente visitar, antes de tudo, o ahu de Tongariki, a maior e mais bela plataforma de moais que se conhece. Venha, de preferência, no fim da tarde, quando o sol banha as 15 grandes estátuas de forma oblíqua, realçando as suas feições e criando longas sombras na direção do mar, ao qual dão as costas. A magia funciona a qualquer hora do dia, mas é ao poente que se perde o senso. Os poucos visitantes – raras vezes veem-se grupos –, parecem atônitos. Fotografam, é claro. Mas também ajoelham-se, deitam ou murmuram sua própria incompreensão. Minha sensação é a de estar diante de um largo palco ao final de uma função. Os 15 atores postam-se lado a lado, rostos longilíneos, parecem ter entre oito e dez metros de altura cada. Só um deles, o segundo da direita para a esquerda usa o pukao, uma espécie de chapéu de pedra ferrosa, que tem o tom avermelhado da ferrugem. Acometidos de um silêncio secular, eles olham para a plateia com uma dignidade tangível. Fico esperando, em vão, que se reclinem para o aplauso.

Ariga ora o te tupuna – ou “rosto vivo do antepassado” é o nome correto dos megálitos de Páscoa no idioma vananga, que é a lingua dos rapanui e, com pequenas variações, a de todos os povos que habitam o triângulo da Polinésia, uma área imensa de mar e ilhas cujos vértices são o Havaí, ao norte, a Nova Zelândia, ao sul, e Páscoa, na direção leste.

E se há alguma coisa que de fato se saiba nessa ilha de tantos mistérios, é que os moais foram esculpidos, século após século, para reverenciar os ancestrais e neles buscar inspiração. Os inúmeros ahus da ilha, erigidos com mais ou menos moais, eram os altares diante dos quais erguiam-se as vilas rapanui. Tongariki é o maior deles e resulta de um trabalho de restauração feito nos anos 1990 por uma equipe multidisciplinar. A grande plataforma havia sido esfacelada por um tsunami decorrente do terremoto de Valdívia, em 1960 – o maior já registrado, tendo provocado estragos entre o Chile, onde ocorreu e o Japão, do outro lado do Pacífico.

Mas quem seriam esses antepassados imortalizados em pedra? Por que quase todos eles têm dedos finos e longos apoiados sobre suas barrigas? Como, diabos, eram transportados desde as encostas de Rano Raraku, o vulcão extinto em que eram esculpidos com talhadeiras chamadas toki, feitas de basalto? As lacunas de conhecimento que permanecem abertas são espaço fértil para distintas versões, sempre especulativas.

Livros, guias e moradores de Páscoa cismam em discordar uns dos outros. Ouve-se falar de guerras das quais nada se sabe, de soberanos que a história não registrou e, como sempre ocorre na falta de fatos, também da presença de extraterrestres ocupando os vazios de onde também alimentam-se os mitos, o respeito e a fé.

A história de Páscoa talvez fosse diferente e mais clara se alguém tivesse conseguido decifrar os glifos de um tipo de escrita chamado rongorongo encontrado na ilha no final do século 19. Eram 24 placas de madeira com desenhos diversos – cerca de 600 foram enumerados – que hoje estão espalhadas em diferentes coleções e museus mundo afora. O fato, porém, de permanecerem encriptados ainda hoje, com toda a tecnologia disponível no século 21, traz ainda mais atenção aos enigmas da ilha remota. Que não é só remota, mas bonita.

Uma ilha sem rios nem árvores

Páscoa – assim se chama por ter sido descoberta pelo Ocidente através do holandês Jacob Roggeveen no domingo de Páscoa de 1722 –, é uma ilha pequena, triangular, com 180 km² (pouco mais do que a metade de Ilhabela, em São Paulo). Os polinésios que a encontraram, possivelmente entre os séculos 4 e 5 d.C., tinham outra noção de tamanho. De modo que não hesitaram em chamá-la de Rapanui, que significa, justamente, terra grande.

Por ter sido criada a partir da erupção de três vulcões – o Poike, a sudeste, o Rano Kau, a sudoeste e o Terevaka, ao norte – é uma ilha rochosa, negra e fartamente coberta por uma vegetação rasteira que a faz assemelhar-se às terras altas da Escócia. Sua topografia é suave, com vales e colinas que se elevam até o máximo de 510 metros, mas os costões e as crateras vulcânicas dão-lhe a necessária dramaticidade, produzindo precipícios, cavernas e fortalezas naturais. O clima é predominantemente úmido e o calor, moderado, dá espaço para noites ligeiramente frias, repletas de estrelas, na isolada vastidão do Pacífico.

Toda a água que se bebe na ilha vem das chuvas e de alguns profundos poços artesianos. Páscoa não tem rios. Pior que isso: quase não tem árvores. Aqui e ali veem-se alguns redutos de eucaliptos replantados, mas conta a história (ou a lenda) que toda a madeira nativa foi utilizada justamente na operação de transporte dos moais. Eis que, em consequência, qualquer caminhada, troteada ou pedalada pela ilha exige uma grossa camada de proteção contra o sol.

Em todo o perimetro da ilha (um pouco menos de 40 quilômetros), existem apenas duas praias de areia. A pequena Ovahe, muito apreciada por surfistas, e a tranquila Anakena, que além da água cristalina do Pacífico oferece aos circunstantes um outro conjunto de moais voltado, como sempre, para o interior da ilha.

O único ahu de Páscoa virado em direção ao mar chama-se Akiwi e é considerado um dos mais antigos do lugar. Também construidos para reverenciar os antepassados, os sete moais desta plataforma têm os olhos perdidos no mar, apontados rumo às ilhas da Polinésia de onde teriam vindo.

+ Veja o álbum de fotos da Ilha de Páscoa
Marcelo Spatafora
Na cidade ritual de Orongo, uma competição escolhia os novos reis
Na cidade ritual de Orongo, uma competição escolhia os novos reisUm herói para o povo rapanui

Os habitantes, quase todos, vivem no pueblo, que é como eles próprios chamam a vila de Hanga Roa, lugar simples, asseado e, aí sim, colorido por flamboyants. Hanga Roa tem mercados, oficinas, lojas para turistas e um campo de futebol em cuja plateia destaca-se a presença de um moal. Tem, também, pousadas, restaurantes e uma igrejinha em estilo eclético que chama a atenção pela desarmonia de suas linhas. O pequeno porto também fica no pueblo e recebe raros navios trazendo suprimentos em uma viagem que consome sete dias desde a costa do Chile. De lá também partem os barcos de passeio e as excursões de snorkeling e mergulho, usualmente realizadas nas águas de imensa visibilidade junto às ilhotas chamadas Motu Kao Kao, Motu Iti e Motu Nui.

O grande diferencial de Hanga Roa, porém, é que nela vive um herói nacional. Alfonso Rapu, que hoje gasta suas horas pescando e cuidando de uma pequena pousada é uma espécie de libertador dos rapanuis. Um moal vivo de uma história trágica.

Rapu era professor da escola local quando, em 1964, liderou um movimento pelos direitos rapanuis. Até então, os ilhéus tinham status de cidadãos de segunda classe. Não podiam votar, não tinham governo eleito, eram proibidos de lecionar o seu próprio idioma e sequer podiam circular livremente pela ilha. O levante de Alfonso Rapu levou o governo de Eduardo Frei Montalva a aceitar as demandas e aprovar, no Congresso, a Lei Páscoa, que deu condição de cidadãos chilenos ao povo rapanui e lhe devolveu o direito de praticar sua língua e professar sua cultura.

A longa história Rapanui, repleta da vácuos e contradições, é espantosamente agitada para uma ilha tão pequena e remota. Os pascoenses viveram, ao que se sabe, em relativa paz até os séculos 15 e 16, quando uma crise de superpopulação (30 mil habitantes é a conta suposta) e escassez de recursos levou a uma guerra entre tribos que resultou em alta mortandade, na destruição dos ahus e no abandono da cantera de Rano Raraku.

Ao final, foram eliminadas as elites de sacerdotes e a monarquia hereditária, cujos reis eram sempre sucessores de Hotu Matu`a, o líder da primeira colonização. Na raiz do problema havia uma forte causa ambiental: a destruição completa das florestas, cuja madeira foi supostamente utilizada para o transporte dos moais.

Adotou-se, a partir de então, o tangata manu, o ritual do homem-pássaro como forma de escolha dos líderes. Uma vez por ano, na primavera, os chefes de todas as tribos levavam seus melhores atletas para uma competição que lembra o triatlo moderno. A partir de uma cidade cerimonial instalada no alto do vulcão Rano Kau – a maior maravilha natural da ilha –, os homens-pássaro tinham de descer as íngremes escarpas até o mar, nadar três quilômetros em águas bravias rumo à ilha de Motu Nui, recolher o ovo de um certo tipo de gaivota e transportá-lo de volta ao alto do vulcão. Para que o ovo não se quebrasse, os competidores usavam uma espécie de cesta atada à cabeça ou ao pescoço. O primeiro a chegar entregava o prêmio ao seu líder, e assim se tornava governante por um ano.

Esse curioso sistema de governo durou até meados do século 19, quando uma nova tragédia abateu-se sobre a ilha. Então oficialmente ligada à Coroa Espanhola, depois que um vice-rei peruano reencontrou Páscoa em 1770, a vida seguia tranquila entre os rapanuis. Até que, entre 1862 e 1863, 24 navios escravagistas peruanos sequestraram 1.400 ilhéus (de um total de pouco mais de 2.000 habitantes) para trabalhos forçados nas fazendas e na exploração de guano na costa de Tarapacá.

A pressão internacional, principalmente da França, suspendeu a operação, mas apenas 15 rapanuis sobreviveram e foram levados de volta a Páscoa. Contaminados por varíola e tuberculose, os sobreviventes acabaram espalhando epidemias entre os rapanui que, segundo números (quase sempre imprecisos) foram reduzidos a 110 indivíduos em 1877.

A um passo da extinção, os poucos remanescentes nem se importaram quando empreendedores franceses começaram a criar ovelhas na ilha. Tampouco se lixaram para a tentativa, coroada de sucesso, do governo do Chile em requerer a soberania sobre a ilha. Na prática, a existência dos rapanui foi apenas tolerada. Confinados por um muro na área onde hoje fica Hanga Roa, seguiram vivendo precariamente até 1964, com o levante de Alfonso Rapu.

Quem vê Hanga Roa nos dias de hoje percebe que a tensão entre nativos e brancos ainda persiste. O hotel que leva o nome da vila está ocupado há meses por manifestantes que reivindicam, sobretudo, a independência da ilha. O mesmo ocorre com a praça em frente à sede do Governo. Para os rapanui estabelecidos com prósperos negócios ligados ao turismo, “trata-se de um movimento minoritário, de gente desocupada”. As aspas são de Mike Rapu, sobrinho de Alfonso e dono de várias empresas locais, inclusive a fábrica de cervejas Mahine, uma excentricidade em uma ilhota sem água.

Mike admite, contudo, que a minoria revoltosa congrega cerca de 600 membros entre os supostos 2.700 nativos. Bandeiras rapanui – brancas, com um símbolo vermelho que identificava a antiga monarquia –, espalhadas pela ilha, confirmam a força dos sublevados. O medo maior é que as notícias desse desentendimento espantem os viajantes que hoje são a base da economia de Páscoa.

Pois nem pense nisso: alguns minutos diante do ahu de Tongariki, ou de qualquer outro que conquistá-lo, o levará a uma viagem muito mais transcendente do que qualquer acontecimento factual. E quando você estiver na borda da cratera do Rano Kau, um buraco perfeitamente redondo de 1,5 quilômetro de diâmetro e 200 metros de profundidade, sua maneira de ver o mundo vai mudar. Com o olhar perdido de um moai, você verá, no fundo dele, um lago azul coberto de vegetação verde, formando o atlas de um planeta cujos continentes são mais numerosos e bem distribuídos entre os oceanos. Um mundo tão diferente quanto a própria Ilha de Páscoa.

+ Veja o álbum de fotos da Ilha de Páscoa
Moais de Páscoa estão em diferentes estágios de construção
Moais de Páscoa estão em diferentes estágios de construçãoILHA DE PÁSCOA: PARA CHEGAR LÁ

A ilha mais remota do planeta é, também, um enigma para os historiadores. E se isso não bastasse, seus vulcões fazem dela uma fascinante atração natural.

DICAS BÁSICAS

Como chegar

A Lan voa diariamente para a Ilha de Páscoa através de Santiago. A novidade é que a mesma companhia agora tem voos para Páscoa via Lima, às quartas e domingos. O preço desde São Paulo, Rio, Foz e Brasilia é de US$ 1.043, entre fevereiro e junho.

Para passear

Rapa Nui é uma ilha pequena, mas não tanto que seja possível conhecê-la a pé. A melhor opção, caso você não esteja no hotel Explora (que inclui todo o transporte) é alugar um carro na vila de Hanga Roa. Você também pode usar bicicletas, mas, nesse caso, é preciso estar em ótima forma.

Melhor época

O clima em Páscoa é agradável durante quase todo o ano, sem uma estação de chuvas acentuada. O calor não passa dos 28 graus no verão. A alta temporada (quando tudo fica mais caro) vai de janeiro a março. Entre junho e julho, pode fazer um friozinho notável.

TRÊS MANEIRAS DE VIAJAR…

Com economia

DORMIR

Como quase tudo na ilha, a hospedagem também é cara. O mínimo que se pode gastar são cem dólares por um quarto bem simples, de madeira, na vila de Hanga Roa. Quem tem essa pechincha é o Kaimana Inn, com seis habitações com ventilador (tel 5632/2551740).

COMER

Simples e agradável, o Haka Honu é uma espécie de botecão em frente ao mar em Hanga Roa. Gostoso para comer com simplicidade, petiscar ou tomar uma cerveja. O ceviche (delicioso) custa US$ 20 e o pisco sour sai por US$ 7. (tel: 5632/ 2552260)

VER

Quase todos os conjuntos de moais (chamados ahu) estão em áreas abertas. Visitá-los não custa um centavo sequer. O mais belo e impressionante dos ahu é o de Tongariki, com 15 moais.

Com conforto

DORMIR

O Hotel Altiplanico tem apenas dois anos de vida e esparrama-se por 16 amplos e luminosos chalés com linda vista para a baía da Hanga Roa. Os ambientes públicos são de muito bom gosto (tel (5632/ 2552189, diárias a US$ 350). É o segundo melhor da ilha.

COMER

Quase toda a comida na ilha é à base de peixes. Se, porém, depois de alguns dias, você quiser variar um pouco, a única pizzaria disponível em Hanga Roa chama-se Giovani e fica na rua principal, que se chama Te pito o te Henua. O telefone é o 5632/ 2100105.

VER

Você vai pagar uma pequena taxa de manutenção para entrar em Rano Raraku, a chamada cantera dos moais – onde todos foram esculpidos. O passeio toma uma hora e meia e é indispensável fazê-lo.

Com luxo

DORMIR

O melhor de Páscoa é o Explora Rapa Nui, que assim como os da Patagônia e do Atacama, é um hotel que inclui tudo, das bebidas e refeições aos passeios guiados. Preços ardidos: 3 noites para casal, US$ 1.980 por pessoa. 5 noites: US$ 3.250 p/pessoa.

COMER

O povo rapanui passa longe do melhor restaurante da ilha, La Taverne du Pecheur, que fica bem em frente ao porto. Não pela comida, mas pelo mau humor de seu proprietário, o francês Gilles Pasquet. A comida é realmente ótima. (Tel: 5632/2100610).

VER

Outro passeio pelo qual se cobra uma taxa é a visita à Aldeia Cerimonial de Orongo, local onde eram realizadas as disputas dos chamados homens-pássaros. Mas o mais impressionante nesta área é a cratera perfeita e gigantesca do vulcão Rano Kau. Os carros chegam até a beira dela.