História do Brasil

História do Brasil

Natureza no Brasil: idéias, políticas, fronteiras (1930 – 1992)

1. Antecedentes

As primeiras medidas visando a conservação da natureza no Brasil foram tomadas ainda no período colonial. A 13 de março de 1797, o governo português expedia carta régia asseverando medidas no sentido de preservar as florestas (BARROS, 1952, p.14). O intento era o de garantir a madeira de lei para a construção naval. Tais medidas contariam com pouco apoio dos naturais da terra. Se as sensibilidades predominantes tendiam a relacionar a natureza circundante a um paraíso, essa percepção no que poderia comportar de maravilhamento estético cedia a intentos mais práticos, o que abundava deveria ser reduzido à utilidade imediata. O louvor da natureza paradisíaca parece ter, na mentalidade corrente, justificado sua afirmação enquanto recurso econômico supostamente inesgotável e os processos de devastação aos quais era submetida. Os três séculos de colonização moldaram as atitudes diante do mundo natural, as quais, numa perspectiva que se alonga no tempo, foram se caracterizando pelo pragmatismo e imediatismo (DEAN, 1996).

Contudo, em fins do século XVIII e princípios do XIX, inúmeros cientistas naturais europeus empreenderam viagens de pesquisa pela colônia, muitos deles contando com o patrocínio da Coroa. Com a vinda da família real para o Brasil foram criadas, sob os auspícios de Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares – principal ministro de Dom João – duas importantes instituições voltadas para a investigação do mundo natural: o Jardim Botânico e o Museu de História Natural. A natureza começava a se constituir, pelo menos para alguns, em objeto de curiosidade (DEAN, 1996).

Tais ações estavam relacionadas, em boa dose, ao novo status adquirido pelas ciências junto ao Estado português. As reformas pombalinas são um bom índice desse prestígio com o qual as ciências da época do Esclarecimento passarão a contar. Em Coimbra esperava-se que o ensino pudesse ser útil ao esforço de recuperação econômica. A ênfase estaria colocada nas ciências naturais, pois delas, sobretudo da mineralogia e da botânica, se esperavam contribuições no sentido de renovar ou inovar a exploração dos recursos naturais das colônias, especialmente do Brasil. (CARVALHO, 1996, p.57).

Os aspectos de caráter instrumental seriam privilegiados em detrimento daqueles relacionados a crítica, o que não significa que estes não se tenham feito sentir. Os botânicos e geólogos a serviço da Coroa, eram perspicazes em sua observação das utilidades da floresta, eventualmente foram críticos do desperdício e da ignorância.

O papel contraditório da ciência e da tecnologia no manejo da Mata Atlântica começa aqui, no despertar da compreensão desses servidores civis de que a floresta seria manejada ou destruída. Não é difícil discernir em seus esforços o começo do conservacionismo no Brasil.(DEAN, 1996, p.135).

A Ilustração disseminava-se pelo mundo ocidental, com ritmos e formas diferenciadas, mas trazia sobretudo um deslocamento na maneira de se olhar a natureza. Novas sensibilidades se desenvolviam em contato com as recém nascidas ciências naturais, buscava-se através da cognição esclarecer os mistérios do mundo, escrutinar suas leis e seu funcionamento; razão e natureza estariam colocadas no centro das preocupações.

No entanto, o projeto da modernidade não se desenrolava sem contradições e ambigüidades. A “razão” ao buscar livrar os homens do medo e investí-los na posição de senhores, acabou, muitas vezes, por converter-se ela mesma em mito.(ADORNO; HORKHEIMER, 1986).

A natureza, ao tornar-se objeto de ciência, seria ao mesmo tempo objeto de reflexão e de um saber fazer. Nas vezes em que o segundo predominou, a natureza tendeu a constituir-se em mera objetividade, alienando-se os homens em relação aquilo mesmo sobre o que exercem o poder (ADORNO; HORKHEIMER, 1986).

De qualquer modo, novas sensibilidades tenderam a se desenvolver em relação ao mundo natural. É o que nos revela a pesquisa efetuada por Keith Thomas, segundo a qual:

foi entre 1500 e 1800 que ocorreu uma série de transformações na maneira pela qual homens e mulheres, de todos os níveis sociais, percebiam e classificavam o mundo natural ao seu redor. Alguns dogmas desde muito estabelecidos sobre o lugar do homem na natureza foram descartados nesse processo. Surgiram novas sensibilidades em relação aos animais, às plantas e à paisagem. O relacionamento do homem com outras espécies foi redefinido; e o seu direito a explorar essas espécies em benefício próprio se viu fortemente contestado. Esses séculos produziram tanto um intenso interesse pelo mundo natural como as dúvidas e ansiedades quanto à relação com aquele que recebemos como herança em forma amplificada.(THOMAS, 1996, p.18).

O estudo realizado por Thomas abrange basicamente a Inglaterra, país onde a revolução industrial foi pioneira, onde a separação entre os homens e seus recursos naturais se fez sentir mais cedo, onde os efeitos dos novos instrumentos tecnológicos de valorização do capital deixaram logo marcas intensas de destruição. Concomitantemente, uma nova sensibilidade se desenvolvia de maneira dispersa, aparecendo nos discursos e atitudes de religiosos, de intelectuais, de aristocratas, de pessoas da classe média, entre os artistas, os políticos, e talvez, principalmente entre os homens de ciência, a natureza começava em muitos casos a ser percebida como uma entidade merecedora de respeito que devia ser incluída no âmbito das preocupações morais.

Por volta de 1800, o predomínio do homem sobre o mundo da natureza era o objetivo da maioria das pessoas, no entanto, tal objetivo não estava imune a controvérsias:

O estudo cuidadoso da história natural fizera cair em descrédito muitas das percepções antropocêntricas dos tempos anteriores. Um senso maior de afinidade com a criação animal debilitara as velhas convicções de que o homem era um ser único. Uma nova preocupação com os sofrimentos dos animais viera à luz; e, ao invés de continuarem destruindo as florestas e derrubando toda árvore sem valor prático, um número cada vez maior de pessoas passava a plantar árvores e a cultivar flores para pura satisfação emocional.(THOMAS ,1996 ,p.18).

Também John McCormick, em livro sobre a história do movimento ambientalista, defende opinião semelhante, ao comentar as sensibilidades da era vitoriana em relação ao mundo natural:

A compreensão do ambiente natural que emergiu das pesquisas dos séculos XVIII e XIX afetou profundamente a visão do homem quanto a seu lugar na natureza. A era vitoriana foi um período de grande autoconfiança e segurança, embora o ideal vitoriano de civilização tenha quase sempre dependido da conquista da natureza pela ciência e pela tecnologia. O domínio sobre o meio ambiente era visto como essencial para o progresso e para a sobrevivência da raça humana. Mas uma ‘consciência biocêntrica’ emergiu gradualmente, reforçando o restabelecimento do sentido de inter-relação entre o homem e a natureza e a aceitação de uma responsabilidade moral relacionada à proteção da natureza contra os abusos. A obra de Darwin forneceu um estímulo importante para esse ponto de vista; a evolução sugeria que o homem era parte integrante de todas as outras espécies e que, por sua própria conta e risco, se havia distanciado da natureza.(McCORMICK, 1992).

Tal perspectiva jogará um papel importante no que diz respeito ao desenvolvimento de novas sensibilidades relacionadas ao mundo natural e ao problema da sua conservação. Diversos autores irão relacionar o apego às criaturas da natureza, bem como a preocupação com a sua conservação, ao distanciamento e ao medo da perda gerados pelo padrão urbano e industrial característico das sociedades modernas (ALPHANDÉRY; BITOUN; DUPONT, 1992; McCORMICK, 1992; MORIN, 1997; NASH, 1989; THOMAS, 1996).

Alphandéry, Bitoun e Dupont observariam que:

A sensibilidade ecológica está, assim, aberta a dois tipos de discurso sobre a natureza e o meio ambiente. Um quantificador, ligado à salvaguarda dos ecossistemas e dos grandes equilíbrios planetários. Outro retoma uma idéia muito antiga, segundo a qual a felicidade humana não está apenas na acumulação de mercadorias, mas também nas alegrias estéticas e no ressurgimento espiritual que traz uma relação mais direta com a natureza.(ALPHANDÉRY; BITOUN; DUPONT, 1992, p.27).

Estas sensibilidades e atitudes relacionadas a preservação da natureza, ao se traduzirem em ações políticas, parecem ter oscilado, também, entre iniciativas pontuais e projetos mais ambiciosos de reforma estrutural da sociedade. De volta ao Brasil, podemos observar tal padrão ocorrendo nas preocupações surgidas no período imperial.

Com a independência, a relação dos brasileiros com o patrimônio natural herdado não se pautou, de uma maneira geral, por precauções de intuito conservacionista. A nova opção econômica surgida e adotada pela nação independente, a onda verde do café, proporcionou um novo ataque, com vigor e entusiasmo redobrado, ao mundo natural. No intervalo de um século a Mata Atlântica seria, quase que completamente, devastada. (DEAN, 1996).

No entanto, dois exemplos de preocupação com a preservação da natureza no Império merecem ser destacados. O primeiro deles se insere dentro de um projeto de reforma da sociedade, enquanto que o outro se refere a uma iniciativa pontual no sentido de conter os efeitos danosos da devastação das florestas na cidade do Rio de Janeiro.

Note-se que a expansão desenfreada das plantações de café e o crescimento desordenado da população foram acompanhados de críticas, mesmo que isoladas, desde os primeiros anos de vida independente do país. Uma das mais conseqüentes destas críticas ao modelo social e econômico vigente vinha de dentro dos próprios quadros do recém nascido Estado brasileiro.

Formado no clima das luzes, José Bonifácio estudou geologia em Coimbra, silvicultura no Brandenburgo, servindo por diversas vezes ao governo português, inclusive no cargo de diretor de reflorestamento. De volta ao Brasil, foi um dos principais articuladores do movimento de independência, porém revelaria em breve, em meio as elites políticas do país, uma sensibilidade destoante no que dizia respeito a maneira pela qual vinha se organizando a atividade econômica. Já em 1823, alertava para que:

Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo egoísmo; nossos montes encostas vão-se escalvando, e com o andar, vítimas do fogo e do machado da ignorância e do do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favorecem a vegetação e alimentam nossas fontes e rios, sem o que nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos.(SILVA, 1963, p.156).

Ao tornar-se o principal conselheiro do imperador, Bonifácio preocupava-se com um aproveitamento mais intenso e previdente dos recursos naturais do Brasil. Tal preocupação se inseria num projeto de reformas sociais mais amplo, do qual constavam a reforma agrária, o fim do tráfico e a extinção gradual da escravidão, a incorporação do índio e do negro à sociedade, uma política externa independente e baseada nos princípios de não-intervenção e autodeterminação.

Norteava o projeto a perspectiva de inaugurar um novo relacionamento entre o homem e a natureza. Influenciado ao mesmo tempo pela sensibilidade pastoral do arcadismo e por uma ciência que associava o conhecimento da natureza a sua manipulação (o que não excluía, como já vimos, uma certa reverência pelas leis naturais), pensava ele na possibilidade de articular, através da “razão”, desenvolvimento e preservação do mundo natural.

Ao comentar a questão da natureza na obra de José Bonifácio, José Augusto Pádua argumenta que esta ocuparia um papel central em seu projeto para o país:

Ao mesmo tempo causa de desalento (pela sua exploração insensata) e fonte de esperança (pelo seu potencial e prodigalidade), ela se constitui num elemento chave do ideário e da política que ele propugnava para o Brasil. Bonifácio esperava – e tinha disso convicção – que o estabelecimento de uma economia de pequenos proprietários e de trabalho livre e autônomo seria o instrumento para a resolução do problema da destruição dos recursos naturais no Brasil.(PÁDUA, 1987, p.37).

A idéia de uma sociedade organizada na base por pequenos proprietários vivendo respeitosa e harmonicamente com a natureza, se chocava, no entanto, com os privilégios garantidos pelo latifúndio, pela escravidão e pela exploração imprevidente da terra. José Bonifácio acabaria afastado da vida política e seu projeto de nação irrealizado.

O tema da natureza reaparecerá, durante o Império, em políticos ligados a corrente do abolicionismo monarquista, liberal e reformista, que poderiam ser considerados como os herdeiros intelectuais de Bonifácio, entre os quais destacam-se Joaquim Nabuco e André Rebouças. O segundo, tendo como modelo os parques nacionais norte-americanos, será o primeiro a propor sua criação em 1876, no Brasil: Um na Ilha do Bananal e outro em Sete Quedas. A idéia não vingaria naquele momento.( DEAN, 1996; DIEGUES, 1997; PÁDUA, 1997).

O outro exemplo de preocupação com a conservação da natureza que gostaríamos de comentar aqui se refere a uma iniciativa mais pontual. Por volta de 1840, as serras da Carioca e da Tijuca, de onde desciam os principais riachos que abasteciam a cidade do Rio de Janeiro, apresentavam-se em estado avançado de devastação, suas florestas haviam sido derrubadas primeiro para o fabrico de carvão e depois para o plantio do café. Com o crescimento da população a cidade passou a sofrer crises periódicas de abastecimento de água, o que levava as autoridades governamentais a acreditarem que o esvaziamento dos rios estivesse ligado às práticas de desmatamento. Tais preocupações levaram a que o governo Imperial se dispusesse a tomar medidas no sentido de preservar e reflorestar a área do maciço da Tijuca. (DRUMOND, 1997; DEAN, 1996).

Em 1817, foram proibidas as derrubadas de árvores e ordenaram-se avaliações com o intuito de que a área fosse desapropriada. Contudo, apenas em 1856 é que umas poucas propriedades foram adquiridas, sendo entregues, em 1862, a administradores com ordens para replantar a cobertura florestal, esforço que seria realizado de modo constante até 1891. O crédito principal seria devido a um proprietário de terra local chamado Manuel Gomes Archer, que administrou a floresta da Tijuca até 1873, supervisionando uma força de trabalho que incluía um capataz e cerca de uma dúzia de escravos, que plantavam e cuidavam das árvores, e uma série de guardas-florestais que impediam a derrubada, caçada ou remoção de quaisquer plantas. O maciço foi reflorestado e efetivamente protegido para a posteridade, e tornando-se Archer um personagem mítico para todos os ambientalistas brasileiros.(DEAN, 1996).

Tal experiência apontava para uma preocupação crescente das elites urbanas com o ambiente em que viviam e com a necessidade de manejá-lo em favor de seu próprio conforto, segurança e saúde. Era um sinal, também, da renascente vontade do Estado de exercer algum controle sobre o ambiente natural. Na virada do século XIX para o XX, surgiriam uma série de órgãos governamentais com responsabilidades específicas no que diz respeito aos recursos naturais, seu pessoal, composto por cientistas e técnicos acabaria por se defrontar com questões relacionadas com a conservação e preservação. ( DEAN, 1996).

No entanto, as preocupações de caráter ambiental, desde o início, parecem ter extrapolado fronteiras nacionais, ampliando o alcance dos debates e práticas relacionados com a conservação e preservação da natureza. Dessa perspectiva nos pareceu importante, antes de prosseguirmos, indicar o surgimento de um movimento ambientalista internacional, o que mais tarde nos ajudará a colocar questões relativas ao entrelaçamento das idéias e práticas sobre conservação e preservação desenvolvidas no Brasil e aquelas traçadas num âmbito maior.

As raízes de um movimento mais amplo de proteção ao mundo natural podem ser detectadas, principalmente, a partir da metade do século XIX. Os primeiros grupos protecionistas surgiram na Grã-Bretanha por volta de 1860. Iniciativas no sentido de preservar florestas e animais silvestres começavam a ter curso no país e em suas colônias. Os alemães se destacavam, já a algum tempo, no campo do manejo florestal disponibilizando uma tradição mais antiga de instrução universitária voltada para essa especialidade. Nos Estados Unidos, um movimento bipartido entre preservacionistas de áreas virgens e conservacionistas de recursos naturais começava a emergir incitando ao debate sobre a questão ambiental. A sensibilidade do público para tais problemas, no princípio, era pequena, mas, à medida que a ciência revelava mais sobre a estrutura da natureza, e as pessoas ganhavam mais mobilidade e passavam a olhar para além da sua vizinhança imediata, começou a crescer e se disseminar.(McCORMICK, 1992).

Seria complicado tentar estabelecer uma origem absoluta no que se refere as idéias e práticas relativas a proteção da natureza. McCormick nos esclarece a esse respeito:

Há, por exemplo, a afirmação de que a conservação foi uma das maiores contribuições da América para os movimentos reformistas mundiais e que suas idéias acabaram por ser exportadas para outras nações. Na verdade o conservacionismo americano foi muito influenciado pelas técnicas alemãs de manejo florestal e a conservação era praticada em algumas partes da Europa – e até na África do Sul e na Índia – antes de surgir nos Estados Unidos.(McCORMICK, 1992, p.16) Ou ainda comentando o surgimento dos parques nacionais:

Existe a sugestão de que os parques nacionais são uma ‘invenção’ americana. O primeiro parque nacional do mundo, foi é verdade, Yellowstone, e o conceito foi sem dúvida criado por David Catlin por volta de 1830; mas Wordsworth havia escrito dez anos antes sobre suas esperanças de que o Distrito dos Lagos inglês fosse encarado como uma espécie de propriedade nacional na qual tem direito e interesse cada homem que tem um olho para perceber e um coração para desfrutar.(McCORMICK, 1992, p.17).

A idéia de constituição de parques nacionais parece ter se disseminado pelo mundo de maneira ampla, servindo, em boa medida, de parâmetro no que se refere as iniciativas de proteção a natureza. Por isso, discutiremos, um pouco, os seus fundamentos conceituais e as perspectivas que se lhe opõem de alguma maneira.

O Parque Nacional de Yellowstone foi criado em 1o. de março de 1872, pelo Congresso dos EUA, que determinava que, a partir daquela data, uma área de 800 mil hectares no Wyoming seria reservada e proibida de ser colonizada, ocupada ou vendida. Estaria destinada para benefício e desfrute do povo. A idéia era de preservar áreas de beleza natural em seu estado selvagem para a posteridade (DIEGUES, 1993).

Nos Estados Unidos, a criação de parques nacionais fortalecia as concepções de autores como Catlin, Thoreau e Marsh, motivadas por um fascínio pelas novas descobertas da biologia e por uma filosofia inspirada no romantismo. Valorizava-se a natureza a partir de uma noção de pertencimento e também pelo prazer da contemplação estética. Tais concepções seriam representadas e defendidas por John Muir e pelo movimento preservacionista. As primeiras lutas estiveram relacionadas a criação do Parque Nacional de Yosemite, em 1890. Incentivado por esse sucesso, Muir ajudou a fundar em 1892, o Sierra Club, o qual trabalhou para tornar as regiões montanhosas da costa do Pacífico acessíveis àqueles que buscavam usufruir das áreas virgens. O clube tornou-se um centro de aglutinação da causa preservacionista, e tem sido apontado por muitos como o precurssor das modernas ONGs. Os preservacionistas agiam motivados por um sentimento de que a civilização havia distorcido o sentido humano da relação com as outras coisas vivas. (McCORMICK, 1992, p.30-31).

Se Muir e os preservacionistas ao pensarem em alternativas de proteção ao meio ambiente, excluíam as áreas consideradas virgens de qualquer ocupação humana mais efetiva, destinando-as quase que exclusivamente à recreação, uma outra corrente, a dos conservacionistas, acreditava na possibilidade de uma exploração sustentada de recursos como o solo, as florestas e a água. Estes, próximos da tradição de manejo florestal desenvolvida na Alemanha, tinham como principal expoente Gifford Pinchot, que sintetizava os objetivos do movimento em três princípios básicos: desenvolvimento (o uso dos recursos existentes pela geração presente), a prevenção do desperdício e o desenvolvimento dos recursos naturais para muitos. Eram portadores de uma perspectiva mais instrumental da relação do homem com a natureza, o que estava em questão para eles era o uso dos recursos naturais de maneira adequada e criteriosa, garantindo ao mesmo tempo a sua continuidade pelas próximas gerações e uma melhor distribuição pela totalidade da população.

A polêmica entre Muir e Pinchot cindiu o ambientalismo americano em dois campos: preservacionistas e conservacionistas. No início do século XX, ambas as correntes ganhavam espaço entre as políticas de Estado. Theodor Roosevelt, tornado presidente em 1901, era admirador da filosofia utilitarista de Pinchot, e tornou-o secretário de estado para a conservação, instituindo a administração dos recursos naturais em assunto de política pública. Muir e as reivindicações dos preservacionistas foram, também, ouvidas por Roosevelt: a incorporação de mais terras ao Parque Nacional de Yosemite, a criação de 53 reservas naturais, 16 monumentos nacionais e cinco novos parques nacionais vinha a contemplar as espectativas destes.

Roosevelt e Pinchot buscaram, também, a ampliação do debate sobre os princípios conservacionistas para além das fronteiras de seu país. Trabalharam na organização de duas conferências internacionais sobre conservação. A primeira, realizada em 1909, reuniu delegados dos Estados Unidos, México, Terra Nova e Canadá, que concluíram da importância de uma nova convenção contando com mais países. A questão da conservação devia se converter em preocupação mundial. Essa segunda convenção seria realizada em Haia, em 1910, no entanto, Roosvelt tendo deixado o cargo de presidente viu a conferência ser cancelada por seu sucessor, Taft.

Na Europa, a questão da conservação também vinha sendo discutida. A preocupação com os pássaros selvagens se desenvolveu em um bom número de organizações européias e gerou discussões em nível internacional. Em 1868, um congresso de especialistas alemães, realizado em Viena, lançava a idéia de um acordo internacional para proteger animais relacionado a uma perspectiva que resgatava a sua utilidade para o manejo florestal e a agricultura. Em 1902, uma convenção para a proteção aos pássaros era assinada por doze países europeus, sofrendo, entretanto, críticas no que se refere ao seu caráter utilitário e limitado aos pássaros, de organizações que pretendiam um documento de maior amplitude e a criação de uma instituição internacional permanente para trabalhar na área da proteção à natureza. (McCORMICK, 1992).

As colônias africanas, principalmente, adquiriram importância num quadro mais amplo de debate sobre a vida selvagem. O ritmo em que se dava a matança de animais na África acabou por chamar a atenção de caçadores e preservacionistas, obviamente por motivos diferentes, para o problema da sua possível extinção. Em 1900, o primeiro acordo ambiental do mundo, a Convenção para a Preservação de Animais, Aves e Peixes na África, era assinado em Londres, pela Inglaterra, Portugal, Itália, França, Alemanha e Congo Belga.

Em 1933, nova convenção era assinada, sobre a Proteção da Fauna e Flora em seu Estado Natural, e ratificada pela maioria dos poderes coloniais africanos. Visava a criação de áreas protegidas, tais como parques nacionais e reservas, incluindo. Entre os pontos positivos poderíamos contar o fato de ter reunido preservacionistas, cientistas e governos em torno de uma causa comum, além de ter tornado seus signatários conscientes dos problemas das colônias africanas de uns e de outros, e ter estabelecido o precedente de organizações não governamentais desempenhando um papel técnico consultivo em iniciativas desse tipo. Por outro lado, os signatários não estavam obrigados a cumprir as regras, não havia fundos para encontros regulares de acompanhamento e nem um comitê de fiscalização. É possível igualmente que a conferência tenha angariado a antipatia das populações locais para com o conceito de proteção da vida selvagem, pois os animais estavam sendo protegidos por razões não práticas e sem consideração para com os direitos tradicionais de caça. Este se tornaria mais tarde um fator crítico nas tentativas pós-independência de promover a conservação. (McCORMICK, 1992).

Os primeiros passos no sentido de se constituir uma organização de âmbito internacional começaram, efetivamente, na Europa, em 1909, quando os protecionistas realizaram, em Paris, o Congresso Internacional para Proteção da Natureza. De lá partiu a idéia da criação de um organismo internacional de proteção da natureza, concretizada, em 1913, com a fundação da Comissão Consultiva para a Proteção Internacional da Natureza. No entanto, tal organismo teve curta existência, em 1914, com a eclosão da 1a. Guerra Mundial, se viu impossibilitado de realizar o que se propunha, sendo precocemente desativado. Em 1934, a idéia foi retomada através da constituição do Office International Council pour la Protecion de la Nature (OIPN), o qual, também, não conseguiu se firmar de maneira mais duradoura.

Com o estouro da 2a. Grande Guerra, no plano internacional, foram poucas as iniciativas no campo da proteção da natureza. Cabe destacar a Convenção sobre a Proteção da Vida Selvagem no Hemisfério Ocidental, aberta à assinatura de todos os países americanos, em 1940. A idéia era que os governos signatários se comprometessem a criar novos parques nacionais e consolidar os já existentes, manter reservas de áreas virgens, elaborar legislações, encorajar o intercâmbio de pesquisas, proteger pássaros migratórios, controlar o comércio de animais selvagens e oferecer condições de proteção de espécies ameaçadas listadas num anexo. Ao final da guerra apenas oito países haviam assinado a convenção, que carecendo de uma administração adequada acabou se esvanecendo.

Ações internacionais mais efetivas no campo da proteção da natureza só se concretizariam após o fim da guerra, em 1945. De todo modo, os parques nacionais acabaram por se disseminar pelo mundo como modelo de preservação do ambiente natural. Após os Estados Unidos, o Canadá criou o seu primeiro parque nacional em 1885, a Nova Zelândia em 1894, a África do Sul e a Austrália em 1898. Na América Latina surgiram no México em 1894, na Argentina em 1903, no Chile em 1926 e no Brasil em 1937, com objetivos semelhantes aos de Yellowstone, ou seja, proteger áreas consideradas virgens e de grande beleza cênica para o deleite dos visitantes.( DIEGUES, 1997).

Na Europa, onde era mais difícil de se falar em áreas virgens, os parques nacionais foram criados no sentido de se estimular as pesquisas de flora e fauna. Em princípio não havia uma definição universalmente aceita do que deveriam ser os objetivos dos parques nacionais, o que se buscou estabelecer pela primeira vez, na já citada, Convenção sobre a Proteção da Flora e Fauna em seu Estado Natural, realizada em 1933, onde se definiram as três características básicas que aqueles deveriam possuir: a) são áreas controladas pelo poder público; b) para a preservação da fauna e flora, objetos de interesse estético, geológico, arqueológico, onde a caça é proibida; c) e que devem servir à visitação pública.

Neste primeiro momento, em que se começava a perceber o problema como algo que extrapolava as fronteiras nacionais, as iniciativas relacionadas a proteção do mundo natural oscilaram, entre uma perspectiva utilitarista, que encarava a natureza enquanto recurso econômico a ser manejado racionalmente (ou seja, a idéia de conservação dos recursos naturais), e uma outra esteticista, que atribuía à natureza um caráter de sacralidade (ou seja, a idéia de preservação de áreas mantidas em seu estado natural). A preocupação em equacionar estas duas atitudes, irá se constituir em uma das principais questões colocadas para os ambientalistas no pós guerra.

No Brasil, desde o século XIX, alguns cientistas e técnicos impunham-se a tarefa de reintegração com a comunidade intelectual européia. As lacunas eram grandes e a tarefa árdua. Os nossos representantes enviados às Exposições Univervais de 1855 e 1862 puderam constatar os avanços no campo da agricultura e silvicultura dos países industrializados, contra o que exibiam envergonhados, frente ao desdém de londrinos e parisienses, um sortimento de enxadas, machados e podões que representavam a tecnologia agrícola do país. A colaboração com colegas estrangeiros se fazia necessária, no entanto, era um desafio difícil, visto o problema da distância e mesmo da indiferença de muitos daqueles.(DEAN, 1996).

Com o término da Guerra do Paraguai, em 1870, a ciência oficial parece ter ganho um novo alento. Algumas iniciativas importantes no campo da pesquisa em ciências naturais se desenvolveram então. Uma Associação Brasileira de Aclimação foi fundada, em 1872, no intuito de testar a adaptabilidade da biota européia nos trópicos e a viabilidade da domesticação de espécies nativas. Contava entre seus membros uma série de notáveis como André Rebouças, Auguste Glaziou, Gustavo Schuch de Capanema e o visconde do Rio Branco.

O Museu Nacional, sob a direção de Ladislau de Souza Netto, um botânico de formação francesa, ganhou uma nova dinâmica. Pesquisas com espécies nativas, sugestões para a criação de reservas florestais, o desenvolvimento de uma taxonomia, a instituição de novas seções, a inauguração de uma série de cursos, a criação de uma rede de correspondência entre pesquisadores e a publicação de uma revista científica, foram algumas das iniciativas do Museu nesse período. O Instituto Imperial Fluminense de Agricultura, responsável pela administração do Jardim Botânico, foi outro que desenvolveu pesquisas, sendo responsável, também, por uma publicação periódica de caráter científico.

Com a proclamação da República e a Constituição de 1891, os estados ganhariam maior autonomia política e econômica. Para o estado de São Paulo isso se convertia em uma enorme vantagem, posto que abria a possibilidade de gastar suas receitas como melhor lhe aprouvesse. O partido republicano, solidamente instalado no governo do estado, começava a se dar conta dos riscos representados pela agricultura de plantation e pelo crescimento desordenado da cidade para o futuro da economia e para a manutenção do seu próprio projeto político. Buscavam se identificar com uma imagem de modernização e racionalidade.

Tal perspectiva abriu espaço para iniciativas que visassem um aumento de produtividade a partir da aplicação de ciência e tecnologia. Foi com esse intuito que o governo do estado começou a contratar um grupo de cientistas formados pelas melhores escolas superiores estrangeiras, os quais iriam criar e renovar instituições que deveriam atuar no sentido de acelerar o desenvolvimento econômico.

Por outro lado, os sinais da devastação ambiental começavam a ser percebidos por uma parcela crescente da sociedade. O jornalista e escritor Euclides da Cunha, em viagem do Rio de Janeiro para São Paulo em 1901, escreveu dois artigos intitulados de “Fazedores de desertos” e “Entre Ruínas”, onde demonstrava preocupação com a paisagem erodida ao longo das vias férreas, fruto de uma atividade agrícola desmedida e imprevidente.(SEVCENKO, 1989) Na capital do estado, o rápido desaparecimento da natureza levou alguns cidadãos a fundar o Clube de Caça e Pesca, que desenvolveu atividades no sentido de evitar a matança de urubus, aves canoras e outras espécies consideradas úteis.

Os técnicos e cientistas contratados pelo governo não demoraram a perceber o padrão predominante das atividades econômicas e a criticá-lo. Isso obviamente levou-os a indispor-se com setores da elite econômica do estado. Warren Dean explica que:

Os cientistas empregados por essas novas instituições assumiram suas tarefas com dedicação, mas seu próprio mandato de eficiência os levou a levantar a bandeira da conservação. O conceito de contradição estrutural parece aqui inteiramente aplicável. Funcionários públicos, membros de uma classe média emergente, geralmente de origem imigrante, passaram a experimentar uma relação conflituosa com os governos que os empregavam, dominados como eram pelos grandes proprietários de terra, cujas premências especulativas, técnicas destrutivas de manejo e zelo por seus direitos de propriedade iriam constituir barreiras à implementação de políticas conservacionistas. Uma grande batalha, de resultados incertos, seria travada. (DEAN, 1996, p.247).

O conceito de contradição estrutural exposto por Dean, é de fundamental importância para que possamos entender o desenvolvimento das políticas ambientais no Brasil. Se pensarmos o Estado como inserido no tecido social, ao invés de sobreposto a este, caracterizado por um projeto político que em dado momento se torna hegemônico, e que necessita se atualizar a cada ação impetrada pelos órgãos de governo, teremos dificuldades de enxergá-lo como algo homogêneo. A necessidade de atualização e legitimação do projeto fazem com que o Estado reflita as contradições da sociedade civil, as quais se configuram numa teia de exercícios de poder que se entrelaçam a partir das instâncias de governo. No caso do meio ambiente é comum que a consciência de técnicos e cientistas se choque com interesses mais fortes dentro da articulação hegemônica, dependendo então, o andamento das políticas propostas, de outras articulações internas e do eco que as preocupações ambientais encontram na sociedade, e, é claro, das pressões exercidas por esta.

No estado de São Paulo, durante a Primeira República, vemos surgir uma geração de cientistas que acabam por se preocupar com um melhor aproveitamento e com a conservação dos recursos naturais. Entre eles destacam-se figuras como Orville Derby, F. W. Dafert, Herman von Ihering, Alberto Loefgren e Edmundo Navarro de Andrade, sendo os quatro primeiros estrangeiros e apenas o último brasileiro, fato que acabará por agravar as dificuldades de implementação das medidas propostas por aqueles.

Navarro foi o único bem sucedido de sua geração. As outras personalidades destacadas deste grupo foram eclipsadas ou destruídas. Loefgren foi pouco a pouco isolado pelo próprio Navarro. Dafert desistiu de tentar convencer os fazendeiros a adotar técnicas agrícolas mais intensivas e assumiu a direção do instituto agronômico austríaco. Ihering escreveu um artigo no qual justificava o extermínio de indígenas. Membros da sociedade científica de Campinas, para os quais Ihering era um alvo menos perigoso que os proprietários de terra que estavam por trás dos massacres, escorraçaram-no de sua direção. Ihering, sentindo-se desprestigiado, abandonou sua cidadania brasileira e se retirou-se para a Europa. O incidente ao menos ajudou a suscitar a formação do Serviço de Proteção ao Índio, uma incumbência que a república havia ignorado por mais de vinte anos. Os superiores de Derby trataram suas políticas e sua pessoa de maneira tão ignominiosa que ele cometeu suicídio. Esses incidentes foram um sinal de que a defesa do patrimônio natural brasileiro não seria prontamente confiada a forasteiros, mesmo que muito competentes. (DEAN, 1996, p.247).

Algumas iniciativas acabaram vingando. Em 1896, a seção Botânica, vinculada a Comissão Geológica e Geográfica sob o comando de Derby, instalou-se na serra da Cantareira, surgindo aí a primeira reserva florestal do estado, cuja principal finalidade era proteger as bacias dos riachos que serviam a cidade de São Paulo de água. Outras duas reservas foram declaradas, uma acima da vila de Cubatão, a do Alto da Serra, em terras doadas por Ihering, em 1909, e outra no Itatiaia, futuro parque nacional, em terras adquiridas pelo governo federal a conselho de Loefgren. Foi ainda graças aos argumentos deste que foi estabelecido, em 1899, o Serviço Florestal e Botânico, que ficava responsável pela conservação das florestas, melhor exploração e reflorestamento no estado. Começou também uma campanha por um código nacional de florestas, parques nacionais e um serviço nacional de florestas, com o fim de proteger estas, os cursos d’água, solos e microclimas. Inspirou a comemoração do primeiro Dia da Árvore no Brasil, comemorado em 1902. Navarro se dedicou fundamentalmente ao reflorestamento com espécimes exóticas, eucaliptos e pinheiros, no que se tornou uma autoridade reconhecida internacionalmente. Suas atividades não o indispunham com as elites locais, mas não se pode dizer que contribuíssem de maneira marcante no que diz respeito a preservação da natureza.

Se uma consciência e propostas conservacionistas começavam a se colocar mais claramente nesse momento, ainda teriam de aguardar por melhores perspectivas de implementação:

Teria de surgir uma geração nativa de cientistas e ativistas. Isto de fato ocorreria , em meio à crise do pós-guerra e ao colapso da república positivista. Dessa vez, as propostas conservacionistas, influenciadas por uma emergente ideologia de estatismo e intervenção social, seriam clara e decisivamente políticas.(DEAN, 1996, p.253).

Missões jesuítico-guaranis: tempo, espaço e representações

1. Apresentação

O objetivo deste trabalho é problematizar sobre os pressupostos que nortearam a instituição das expressões artísticas nas missões platinas no século XVII, buscando os referentes histórico-culturais que nortearam a atribuição de finalidades pedagógicas às artes, desde a antigüidade clássica, e que posteriormente são retomados por São Tomás de Aquino e amplamente discutidos por teólogos da Igreja Católica desde o séc. XIV, incorporando valores políticos e laicos a uma concepção de arte religiosa que se define melhor a partir de meados do séc. XVI.

Considerei a proposta jesuítica, como parte de propósitos civilizacionais Ibéricos em relação às colônias americanas, bem como de um ideário religioso e institucional da Igreja Católica naquele período, como uma proposta estética que envolvia valores morais, políticos, religiosos e artísticos. Entretanto, segundo Régis Debray (1992) , a imagem é sempre representativa porque representa alguma coisa para quem olha, e assim, existem maneiras de ver e de sentir que se relacionam não apenas a percepção, mas a vivências e experiências associadas também a um lastro cultural. Logo, as maneiras de olhar influem nos sentidos atribuídos às imagens em um determinado contexto. E nas Missões há uma maioria de índios, sob a orientação de uns poucos padres. Por isso, busco problematizar sobre a arte missioneira em um contexto marcado pelos processos de construção sobre as identidades sul-americanas e sobretudo platinas, nos quais as interpretações indígenas pouco aparecem.

A “sociedade” colonial: unidade e diversidade na América Portuguesa

1. O “modelo social” do Antigo Regime

Certa feita, um professor, daqueles que hoje em dia raramente surgem, disse durante uma aula de História: “a mudança no vocabulário indica mudança na sociedade”. À primeira vista, pode parecer uma afirmação óbvia, sobretudo quando proferida em meio a historiadores. Porém ela encerra elementos que, se não observados meticulosamente pelo profissional da História, podem se voltar contra o seu ofício. E o principal destes elementos é a historicidade, ou seja, a especificidade do objeto em suas delimitações espaciais e temporais; a dificuldade em reduzir determinadas “realidades” históricas a esquemas ou conceitos que são a elas externos.

Dentro desta orientação procuraremos tratar aqui, de forma sumária, de alguns elementos constitutivos daquilo que costumamos chamar – talvez em desacordo com o que propôs o professor acima – sociedade colonial da América portuguesa. Assim, devemos primeiramente traçar algumas linhas gerais acerca dos padrões norteadores desta sociedade – ou desta parte do corpo místico, como veremos adiante – com o objetivo de situarmos em termos sócio-culturais o tema em questão, procurando não utilizar categorias estranhas a este.

Devemos falar, portanto, em Antigo Regime – expressão que, aliás, não era utilizada durante o período em que floresciam os Estados modernos da Cristandade ocidental, entre os séculos XV e XVIII –, que é o tecido onde se dão as relações definidoras dos grupos sociais sobre os quais ora nos debruçamos. Em um regime onde a norma não é o direito, mas sim o privilégio, onde não importa a classe, mas a qualidade, onde a igualdade ainda não tinha tomado o lugar da hierarquia, a organização se dava, ao menos em termos teóricos, através da divisão dos grupos em três estados, divisão esta que tem origem em uma simplificação teórica pela qual passa a Cristandade no século XI, onde a sociedade medieval é dividida entre os que oram, os que guerream e os que trabalham.

Assim sendo, a tripartição que a sociedade ocidental da Modernidade herda da teologia política medieval consiste das seguintes ordens, a saber, o clero, a nobreza e o povo, unificados pela cabeça que é o rei, prova irrefutável da hierarquização antropomórfica desta sociedade. Desta forma, o rei surge enquanto promovedor da justiça e propagador da religião, fins ante aos quais não se lhe pode antepor nenhum constrangimento, nisto consistindo o seu poder absoluto – respeitando o monarca, os privilégios e a lei, agindo sempre como manda o costume. Daí a natureza contratual do poder durante a Época Moderna, cujo grande exemplo está no juramento do rei frente ao seu povo, sendo grande indício desta matriz jurisdicionalista o que proferiu D. João II, ainda em 1481:

Juramos e prometemos de com a graça de Deus vos reger e governar bem e direitamente e vos ministrar inteiramente justiça, quanto a humana fraqueza permita e de vos guardar vossos privilégios, graças e mercês, liberdades e franquezas que vos foram dadas e outorgadas por El-Rei meu senhor e padre cuja alma Deus haja e per outros reis passados seus predecessores (Apud MAGALHÃES, 1997, p. 63).

Sem dúvida, sintomático.

Complementando a o princípio contido na frase do nosso professor à qual recorremos no início do texto, cabe mencionar aqui que nem sempre palavras novas surgem como indicadoras de uma mudança na sociedade. O que pode ocorrer também, e não é raro, é a ressemantização de palavras já conhecidas. Chamamos atenção a isto agora para mencionar o corpo místico, metáfora utilizada na Alta Idade Média como representação do sacramento da eucaristia, onde o corpo de Cristo era representado na comunhão, passando no início do século XIII a efetivamente ser o corpo de Cristo, com o dogma da transubstanciação. (1)

A partir deste momento, principalmente com os escritos de João de Salisbury, ocorre uma temporalização da metáfora, uma vez que esta passa a ser associada à divisão trifuncional da Cristandade, que mencionamos anteriormente, dando base teórica a uma concepção corporativa da sociedade. Assim, no que diz respeito a uma visão secularizada, o rei – já no alvorecer da Época Moderna – será identificado com a cabeça deste corpo, sendo os demais setores da sociedade identificados com os membros e, inclusive, com os orgãos internos do corpo místico. A metáfora, como não poderia deixar de ser, é ambígua. De um lado, evoca a interdependência entre as partes do corpo social, firmando a noção corporativa da sociedade e lançando as bases para uma posterior formulação política de caráter contratualista.

Porém, de outro lado, reforça a concepção hierarquizante da monarquia, visto que o rei guiava o restante do corpo por meio da alienação do poder in habitu deste em favor daquele. No caso que aqui nos interessa, a matriz lusitana, parece que esta última concepção prevaleceu ao menos até 1640, com a Restauração Portuguesa, onde a matriz contratualista surge com grande força no cenário político lusitano.

É importante também notarmos que a sociedade que se desenvolve sob este regime é essencialmente uma sociedade de corte, onde os padrões culturais influenciam e são influenciados por um grupo que está próximo da cabeça do reino. Em Portugal, temos ainda uma peculiaridade, da qual nos dá uma pista Diogo Ramada Curto: a catolicidade. Para Curto, mais do que uma sociedade de corte, a sociedade portuguesa – quanto ao modelo de organização – é uma sociedade de capelas, onde, na própria corte, a capela real assume lugar de relevado destaque (CURTO, 1997, p. 113-114). Corte ou capela, o que importa é que os valores baseados na honra – virtude eminentemente cavalheiresca oriunda do medievo ocidental – irão nortear grande parte dos sentimentos e ações nos três ou quatro séculos da Modernidade.

Dentro de um sistema como este, como poderia funcionar um mecanismo de poder autolegitimador? De que forma os conflitos latentes são encaminhados? As respostas para estas perguntas, se é que existem, devem ser longas. Mas podemos mencionar alguns mecanismos que corroboram com a imagem que estamos a construir, além de estarem de acordo com o princípio geral formulado pelo nosso professor no início do texto, o princípio da historicidade dos termos. Dádivas, mercês, perdões e negociações. É Diogo R. Curto que nos aponta, novamente, este caminho (CURTO, 1997, p. 120-121). Estas “trocas sociais consideradas políticas” são arroladas por ele, e são percebidas de forma generalizada na sociedade lusitana no início do período moderno, de forma que tanto o rei como um cavaleiro gastam imensas quantias para presentearem um ao outro, ou tanto o rei como um alto funcionário da administração concedem perdões – um a criminosos, outro a devedores –, assim como as mercês funcionam quase como moeda em troca de favores a certa altura do século XVI.

Assim sendo devemos considerar que, ao estudarmos a América portuguesa em qualquer das suas facetas, precisamos estar atentos para o fato de que estamos nos relacionando – é claro, considerando-se os limites da documentação – com uma sociedade que tem os seus padrões ditados ou diretamente influenciados pelas normas sociais, políticas, econômicas e culturais predominantes na Europa neste período. Com isto não estamos descartando a influência e até mesmo a preponderância de outras matrizes culturais, como as originárias de grupos ameríndios ou africanos, mas estamos dizendo que o estudo das formas sociais encontradas na América portuguesa devem levar em consideração a apropriação dos padrões do Antigo Regime europeu pelos demais padrões e vice-versa, assim como deve considerar o contexto cultural da produção dos documentos que a nós chegaram – resultado da burocratização empreendida pelo Estado moderno, feição que fôra do Antigo Regime.

Seguindo então o princípio geral contido na frase do nosso espirituoso professor, mencionada há poucas páginas atrás, ao passarmos para o território colonial devemos portanto estar atentos às categorias típicas do Antigo Regime, não lançando a priori nossas categorizações sobre as formações sociais da América portuguesa, onde não encontramos, por exemplo, como elemento definidor a oposição entre os que detém os meios de produção e os que detém apenas sua força de trabalho, mas sim entre peões e gente de mor qualidade. Dentro desta perspectiva, notamos que as hierarquias são marcadas, nestes grupos sociais, pela exteriorização ou ritualização, onde formas de tratamento, comportamento, vestuário et cœtera assumem uma versão visível dos privilégios, foros e distinções sociais – que também se materializavam em isenções fiscais, favorecimentos jurídicos e preferência quando da escolha de membros para cargos na administração real, onde a proximidade com o rei – em uma estrutura de poder que é vertical – também sinaliza distinção. Desta forma, a principal distinção jurídica – expressa nas Ordenações Manuelinas e confirmada no Código Filipino – era em relação à presença ou não da fidalguia, da condição de nobreza, que envolvia basicamente três elementos: o pertencimento a um grupo – dada a noção corporativa desta sociedade –, a relação com os chamados “ofícios mecânicos” – incluindo-se aí desde o carpinteiro até o comerciante ou dono de loja – e a presença ou não de linhagem “infecta” – moura, hebréia e, posteriormente, negra (cabe ressaltar que estes dois últimos itens, a linhagem “mecânica” ou das “raças infectas” foram incorporadas sob a designação “defeito de sangue”). Segundo Stuart Schwartz (1988, p.210), fortuna, domínio senhorial, autoridade sobre dependentes, manutenção e promoção da linhagem e dedicação às armas ou à política constituíam os elementos do ideal de nobreza que impregnava a sociedade e se apresentava como a meta a ser atingida.

E este ideal gerava inclusive subdivisões jurídicas, principalmente entre aqueles grupos anteriormente designados como “peões” da qual se constituía em grande parte as populações urbanas, como as divisões entre os aprendizes e mestres, empregados e boticários, e todos estes grupos possuindo, na maioria das vezes, escravos, o que mais uma vez aponta para a incorporação daqueles ideais. Não podemos também nos esquecer de uma das divisões fundamentais da qual padecera por quase três séculos a sociedade luso-americana: cristãos-velhos e cristãos-novos. Esta divisão é particularmente dramática, uma vez que estes últimos, os decendentes dos judeus batizados à força ou de pé em 1497, são legalmente discriminados, impedidos de assumir cargos públicos, alcançar status de nobreza e, o que parece ainda mais dramático, sofrem grande perseguição popular durante, principalmente, os Quinhentos e os Seiscentos. Não menos importante é a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, que poderia gerar problemas sobretudo quando os ilegítimos tentavam galgar cargos militares ou da governança, sem falar na preterição destes quando das disputas por heranças.

Porém, não devemos confundir a idealização com a realidade, uma vez que a mobilidade social ocorria tanto em espaço metropolitano quanto em espaço colonial. A fidalguia – grau simples de nobreza, “filho de algo” – poderia ser alcançada através de mercê do rei, uma vez que seu postulante tivesse prestado serviço de relevante importância à monarquia, além de ser conseguida também por outros setores, sendo prova disto a grande promoção social conseguida desde o século XVI pelos letrados, ou seja, aqueles que passaram pelos colégios e universidades e que vieram a desempenhar funções administrativas no reino. Estes se tornaram uma categoria específica na monarquia, que se diferenciava das categorias inferiores, como a dos oficiais mecânicos, e seus membros poderiam ser alçados, não era algo raro, à fidalguia. Neste sentido, dada a multiplicidade social e étnica no espaço colonial, a possibilidade da mobilidade social ascendente conferia ao mais simples colono, segundo os cronistas daquele período, “ares de grande fidalgo”. Aparece aí com grande força o ideal nobiliárquico na sociedade colonial, fundada sobretudo naquela diferença que identificou Sérgio Buarque de Holanda entre o aventureiro e o trabalhador.

Notas

* Trabalho realizado com o apoio da FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Publicado anteriormente na edição nº16 (abril/maio de 2003) da revista virtual Klepsidra.

(1) Todas as informações acerca do corpo místico estão baseadas em recente trabalho de William de Souza Martins. As imagens do corpo místico nos escritos dos religiosos mendicantes. In: Membros do Corpo Místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700 – 1822). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. São Paulo, mimeo, 2001, 2v.

A criação do mito do Brasil holandês

1. Apresentação

Ao pensar escrever este trabalho, levei em consideração a curiosidade que passa a muitos de nós sobre o período em que parte do Brasil foi governada pelos holandeses (1630 a 1645, em Pernambuco principalmente).

As principais leituras basearam-se em Tempo dos flamengos, História geral da civilização brasileira, Guerras do Brasil (1504-1654) e História da vida privada no Brasil.

Talvez a leitura tenha ficado um pouco “viciada” nos escritos de Mello Neto (Tempo dos flamengos), mas isto ocorreu principalmente pela dificuldade em se encontrar nas bibliotecas outros livros sobre o tema (como obras Olinda restaurada e Os holandeses no Brasil que estão extraviados ou sempre locados).

Notas

* Trabalho realizado com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Publicado anteriormente na edição nº3 (agosto/setembro de 2000) da revista virtual Klepsidra.

Nuances da morte no palco do barroco brasileiro colonial

1. Introdução ao espetáculo barroco

Razão, realidade, praticidade, ciência. Por uma visão de mundo estreitamente ligada ao Renascimento, fortemente presente nos séculos XV e XVI, o homem dos seiscentos vê o desenrolar da contra-reforma e do absolutismo oferecer a reconquista por parte da Igreja de esferas antes dominadas pelo ideário renascentista. À denotação renascentista opõe-se a conotação religiosa com sua pluralidade de significados impelindo o pensamento ao abstrato e ao invisível.

Situado em tal ambiente de conflito entre a exaltação do real palpável renascentista e a contemplação da perpetuidade espiritual religiosa, o barroco mostra-se como uma constante referência ao conflito e à contenção de impulsos carnais e espirituais. De um lado, uma série de colocações e pensamentos aludidos à vida prática, de outro, mecanismos religiosos que, por meio de certa aviltação à matéria e ao palpável, tornam o cotidiano voltado para si mesmo algo pecaminoso desencadeador de drásticas conseqüências espirituais impelindo os fiéis a desejarem pôr suas almas “no verdadeiro caminho da salvação”(1) indicado pela igreja.

A utilização, nas artes plásticas, de linhas indecisas em uma diagonalidade perturbadora e da forte presença de claro-escuros como contraste entre opostos evidencia tal conflito de modo implícito, mas ainda assim inquietante. Expandindo o pensamento aristotélico(ARISTÓTELES, 1993) a uma visão artística mais abrangente, vemos tais características estéticas como forma de eliminação de sentimentos e agonias reprimidas por meio de uma catarse fundada em uma inquietude fortemente presente no âmago da cultura barroca. Tal como podemos perceber na estrutura literária a recorrência a jogos de palavras como os acrósticos e a estruturas paradoxais baseadas no uso de antíteses que exprimem uma atmosfera conflituosa na manifestação literária, a arte apresenta um modo de, senão evidenciar o conflito entre fé e razão, eliminá-lo de forma catártica. O paradoxo entre o racional e sua funcionalidade e o temor religioso ao racionalismo por meio do pecado, coloca o pensamento e a prática religiosa dos seiscentos sobre uma linha divisória entre a condenação e a vida eterna. Este espaço agônico, como colocado por Affonso Ávila(ÁVILA, 1970), produz um constante jogo polissêmico na conduta religiosa imprimindo nos rituais um caráter especial à análise histórica. À disseminação do temor ao purgatório por meio de condutas que têm como função primeira colocar a “alma no caminho da salvação desejando como verdadeiro christão morrer”(2), uniu-se a expressão da imensa pluralidade semântica do pensamento barroco por meio do uso simbólico da forma, da cor, da palavra, da idéia, do ritmo e da melodia.

Entre tais simbolismos constrói-se, ao longo do século XVII, uma rede de metáforas cotidianas vivenciadas durante a era barroca. Susanna Peters(PETERS, 1970), ao discorrer sobre o início da literatura seiscentista, caracteriza a visão de mundo como um teatro e da vida como um roteiro a ser encenado como algo comum e inerente ao pensar artístico. Estaria, portanto, tal visão intimamente ligada aos ritos fortemente presentes na cultura barroca colonial brasileira por meio do recurso a uma forte simbologia que traria consigo uma visão teatral e mecanística do mundo regulamentada pelos costumes culturais e religiosos. A ornamentação presente não apenas nas artes como também em objetos de uso cotidiano explicita uma tendência ao tratamento da vida como um palco a ser adornado de significados e de ritos teatrais específicos.

Se o barroco contribui para tal direcionamento da catarse, a morte se mostra como algo peculiar: ao ter a dicotomia entre fé e razão transformada em conflito por meio do temor à punição post mortem de pecados, é nela que os ritos se acentuam e se mostram como elementos decisivos no decorrer do espetáculo da vida por constituir seu desfecho.

Notas

(1)Testamento de Marcellino de Camargo. In: Inventários e testamento”, Arquivo público de S. Paulo, v. 22, p. 483.

(2)Testamento de Miguel Leite de Carvalho. In: Inventários e testamentos, Arquivo público de S. Paulo, v.22, p. 63.

Brasil: um amigo adversário dos EUA

1. Introdução

Desde o seu início, o governo do general Geisel (1974-1979) se propôs a realizar a abertura política do regime militar, colocando-o em um caminho que o conduziria ao seu final. Para Geisel e seu grupo, que assumiam o poder após dois governos da linha dura das Forças Armadas – Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974) – o regime militar padecia de uma contradição interna.

Quando grupos de esquerda se definiram pela luta armada como única forma de derrotar o regime e passaram a atuar na clandestinidade fazendo assaltos a bancos e seqüestros, os militares da linha dura se viram amparados para implantar um esquema repressor que eliminasse os opositores ao regime. Foi no fim do governo Costa e Silva que a repressão começou a se institucionalizar dentro do Estado, com a criação da Operação Bandeirantes (OBAN) e com os DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna). Os grupos de luta armada não resistiram à organização e aos métodos de terror dos grupos de repressão e em cerca de dois anos foram desbaratados. No entanto, a força dos grupos de repressão escapou do controle das autoridades do Estado, produzindo um problema de hierarquia. Oficiais de patentes inferiores com a informação em suas mãos tinham o poder de vida e morte sobre membros da sociedade civil, independentemente das decisões de seus superiores. Essa quebra da hierarquia, algo tão caro aos níveis mais altos do comando militar, assustava Geisel e o seu chefe da Casa Civil, o também general, Golbery do Couto e Silva, que também por isso, procuraram promover a distensão do regime militar.

Mas o governo Geisel não se pautou apenas em promover a abertura política. O governo Geisel foi o responsável pelo Pragmatismo Responsável, um projeto de política exterior pelo qual o Brasil procurou ampliar suas relações com outros países, saindo dos limites estreitos das relações hemisféricas, marcadas pela subordinação aos Estados Unidos. Sendo assim, era previsível, que em algum momento os interesses brasileiros se confrontariam com os interesses norte-americanos, afinal uma política externa autônoma de qualquer país latino-americano significa, em última análise, um questionamento à liderança dos Estados Unidos sobre nosso continente.

Esse choque ocorreu de forma clara durante o governo Geisel com a assinatura do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, quando o país necessitando reorientar sua economia para escapar da vulnerabilidade energética e da dependência tecnológica norte-americana procurou a República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) como parceria para um projeto de transferência completa da tecnologia nuclear. Esse é o objetivo deste artigo, conhecer um pouco mais o Pragmatismo Responsável, como política externa voltada ao desenvolvimento econômico, e especialmente o momento de maior afastamento entre Brasil e Estados Unidos, simbolizado no Acordo Nuclear assinado com a Alemanha Ocidental.

Este texto está organizado em três partes. Na primeira, tratamos do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) como opção do governo Geisel (1974-1979) pelo desenvolvimento econômico e do Pragmatismo Responsável como política externa voltada para a consecução dos objetivos propostos no plano. Na segunda parte abordaremos de forma retrospectiva as relações entre o Brasil e os Estados Unidos a partir do final da 2ª Guerra Mundial, mostrando o distanciamento progressivo entre os dois países que atingiria seu ápice durante o governo Geisel (1974-1979). A última parte, continuamos abordando as relações Brasil-Estados Unidos, mas nos concentrando no governo Geisel, com especial enfoque ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha.

A primeira década (quem sabe a última) do Mercosul

1. Introdução

São muito complexas as razões que levam dois países a manter um entendimento por várias décadas, assim como motivos fúteis podem levar estes mesmos países a inúmeros conflitos. O relacionamento duradouro necessita de muita cautela na adoção de medidas internas e externas de interesse mútuo, assim como um posicionamento no contexto internacional que leve em consideração o pensamento bilateral. Atitudes unilaterais fazem ruir qualquer processo de integração que possa ter levado vários anos para ser construído.

Brasil e Argentina possuem um passado histórico de frustrações no âmbito das relações bilaterais. Um dos primeiros motivos que manteve o distanciamento das duas nações foi a ambigüidade histórica das metrópoles colonizadoras, Portugal e Espanha. Potências marítimas à época do descobrimento, implantaram sistemas diferentes de colonização, seja no aspecto político quanto no econômico e no cultural.

Este ensaio objetiva mostrar como se processaram as primeiras intenções de aproximação, como isto resultou em assinaturas de acordos e tratados e, posteriormente, como se estabeleceu o Mercado Comum do Cone Sul. E, ainda, o que poderemos esperar desta integração, na visão de historiadores e pesquisadores.

As perguntas que nortearam o trabalho foram: será que é possível continuar o processo de integração do Mercosul, ou a interdependência dos países, já que Brasil e Argentina vêm tomando decisões unilaterais, principalmente no campo microeconômico, prejudicando as decisões conjuntas pactuadas em bloco? E qual será o futuro do Mercosul com o estabelecimento da ALCA por iniciativa dos Estados Unidos? Teremos mais uma década? Ou esta foi a última?

Os recursos utilizados neste ensaio foram: literatura referente a política externa e história das relações internacionais, artigos publicados em periódicos e opiniões expressadas em ensaios organizados por especialistas em publicações diversas. Todos estão referenciados na página de bibliografia ao final.

Neocatecumenato: A ressonância de uma nova identidade laica

1. Prefácio

Nada inquieta tanto o espírito humano quanto o debate sobre o “Divino”. Independente de que lado ou credo esteja com a razão, à religiosidade, que é uma característica inerente ao ser humano, suscita manifestações das mais diversas formas e tipos.

Estas manifestações acabam por criar um “mercado” religioso, onde, em qualquer esquina, se pode criar uma Igreja e angariar um crescente número de fiéis desejosos de alcançar algum tipo de salvação. Entretanto, “criar” uma entidade religiosa e manter um projeto competente de identidade que legitime seus atos são ações diferentes.

Partindo deste ponto, este trabalho visa vislumbrar como é criado este projeto de identidade, tendo como base uma tendência que está florescendo na Igreja Católica, o Caminho Neocatecumenal.

Apesar de possuir características próprias, o Caminho Neocatecumenal mostra como o mundo cristão está se voltando claramente para um retorno à tradição, resgatando valores como família, castidade, moral etc, e abrindo combate claro ao sistema globalizante individualista que se instalou há alguns anos. Este retorno à tradição também é visualizado em outros seguimentos religiosos, que por vezes assumem características fundamentalistas e ações extremas, como o caso de alguns grupos árabes e até mesmo movimentos cristãos.

As linhas que se seguem tentarão expor, sem descer a minúcias, como foi este voltar ao “antigo” na Igreja Católica, retorno este visto no Neocatecumenato. O que é o Caminho Neocatecumenal, quais foram as resistências internas e externas à sua implantação, como a sociedade reagiu ao seu surgimento, como seu projeto de identidade está influenciando as bases de uma das maiores instituições do mundo são questões a serem abordadas nesta pequena explanação.

O apoio político e militar no governo JK

1. Introdução

Observada retrospectivamente, a Quarta República (1945-1964) pode ser caracterizada como um dos períodos mais turbulentos – porém não menos rico – da história do Brasil. Dos quatro presidentes do período (Eurico Dutra, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros), dois não completaram o mandato. Dos dois vice-presidentes eleitos e que assumiram a Presidência (Café Filho e João Goulart), nenhum conseguiu transmitir a faixa presidencial ao sucessor. Além disso, o período é marcado por uma constante participação militar na política, que resultou no Golpe Militar de 64 e na extinção da experiência democrática pela qual o país vivia, iniciando uma ditadura com duração de 21 anos.

Excetuando-se o governo do general Eurico Dutra (1945-1951), que mais parece um entreato da Era Vargas, o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) emerge dessa turbulenta experiência democrática que foi a Quarta República, como um período atípico de desenvolvimento econômico e estabilidade política, no meio de dois governos problemáticos: o de Getúlio Vargas (1951-1954), que terminou com o seu suicídio e o de Jânio Quadros (1961), encerrado com sua renúncia. A força dessa imagem de desenvolvimento econômico e estabilidade política é tão poderosa, que muitos chamam esse governo de “Era JK” ou de “Anos Dourados”.

Em seu governo, Juscelino Kubitschek encontrou uma conjuntura que se apresentava como uma das mais sombrias que poderia existir para um político recentemente eleito.

No terreno econômico, a reversão de uma tendência de crescimento que se manifestara positivamente desde 1954; no campo ideológico, o país assistia a uma verdadeira conflagração, com os debates políticos travados nos termos da maior violência e em clima de enorme emocionalidade; socialmente, havia profunda inquietação, resultante quer dos problemas econômicos, especialmente através das suas conseqüências inflacionárias, quer das questões de ordem ideológico-política.” (CARDOSO, 1977, p.185)

No entanto, o governo Kubitschek conseguiu reverter essas tendências – pelo menos temporariamente – tornando-se num modelo almejado por políticos brasileiros de uma ampla gama de partidos, que sempre tentam associar sua imagem a de JK. E esse é o grande problema. Quando transformamos uma pessoa em um modelo, deslocamo-la do mundo real, com suas limitações de personalidade e de contexto histórico e passamos a vê-la como uma pessoa que caminha livre, que atua única e exclusivamente por seus desejos e ações, sem quaisquer condicionamentos, exceto sua própria vontade. Com isso, perdemos a dimensão humana dessa pessoa e ela se torna um herói, única pessoa capaz de modificar uma dada situação.

Poderíamos abordar vários aspectos do governo JK neste texto, no entanto nos concentraremos apenas na questão da estabilidade política dos anos JK. Para sermos mais precisos, nos deteremos a estudar a influência e as limitações da personalidade de JK na estabilidade política de seu governo até o final de seu mandato, algo que somente um outro presidente da Quarta República.

Sistema político oligárquico da República Velha

1. A República da Espada

A passagem do Império para a República não significou mudanças na estrutura do país e se deu a partir da união de classes distintas: cafeicultores, militares e burguesia. Segundo Nelson Werneck Sodré:

A classe média não tinha meios para fazer sentir suas necessidades e, por si só, não estava em condições de apresentá-las. A classe dos trabalhadores, ainda insignificante do ponto de vista numérico, e peada pela sua componente rural, não pesava na balança política. Qualquer alteração só poderia surgir ou da própria classe dominante, ao desinteressar-se do regime dominante vigorante ou de algumas formas de sua vigência, ou de uma composição entre a fração mais poderosa da classe média, particularmente naquilo que a classe média tinha como elemento de força. Quando isso acontece, surge a República.

Obviamente este setores da sociedade intencionavam buscar na nova forma de governo a satisfação de seus interesses particulares, mas o caráter conflitante desses interesses não se evidenciou até que o perigo de um contra-golpe monarquista tivesse passado. Da proclamação da República até 1894, o que se observa é que os governos constituídos, apesar da dominação da classe média, particularmente dos militares, representaram um período de transição até a volta e consolidação das oligarquias no poder. Logo após o Golpe de 15 de Novembro, o marechal Deodoro tornou-se o chefe do Governo Provisório e, de acordo com a Constituição republicana, foi eleito indiretamente para a presidência.

Seu governo pretendeu transformar o país em uma moderna República capitalista industrializada. Mas os meios que usou junto com seu ministro da Fazenda, Rui Barbosa, levou a séria crise financeira. Os fazendeiros e as empresas estrangeiras, obviamente contra o processo de industrialização, passaram a fazer oposição a Deodoro que substituiu Rui Barbosa pelo barão de Lucena, um monarquista conservador. Ao contrário do que se esperava com a troca, ou seja, manter-se no poder, passou a enfrentar também a oposição dos reformistas e industrialistas. Diante disso, tentou um golpe e acabou renunciando a favor de seu vice, marechal Floriano Peixoto.

Floriano (1891-1894) representava a consolidação do novo regime, com executivo forte e centralizado. Em seu governo tem-se um breve domínio da classe média, da burguesia e de uma política econômica industrializante. Incentivava a expansão urbano industrial estimulando importação de máquinas, matérias-primas e insumos, desagradando o setor agrário que preferia ver os recursos canalizados para suas atividades.

Sistema político oligárquico da República Velha

1. A República da Espada

A passagem do Império para a República não significou mudanças na estrutura do país e se deu a partir da união de classes distintas: cafeicultores, militares e burguesia. Segundo Nelson Werneck Sodré:

A classe média não tinha meios para fazer sentir suas necessidades e, por si só, não estava em condições de apresentá-las. A classe dos trabalhadores, ainda insignificante do ponto de vista numérico, e peada pela sua componente rural, não pesava na balança política. Qualquer alteração só poderia surgir ou da própria classe dominante, ao desinteressar-se do regime dominante vigorante ou de algumas formas de sua vigência, ou de uma composição entre a fração mais poderosa da classe média, particularmente naquilo que a classe média tinha como elemento de força. Quando isso acontece, surge a República.

Obviamente este setores da sociedade intencionavam buscar na nova forma de governo a satisfação de seus interesses particulares, mas o caráter conflitante desses interesses não se evidenciou até que o perigo de um contra-golpe monarquista tivesse passado. Da proclamação da República até 1894, o que se observa é que os governos constituídos, apesar da dominação da classe média, particularmente dos militares, representaram um período de transição até a volta e consolidação das oligarquias no poder. Logo após o Golpe de 15 de Novembro, o marechal Deodoro tornou-se o chefe do Governo Provisório e, de acordo com a Constituição republicana, foi eleito indiretamente para a presidência.

Seu governo pretendeu transformar o país em uma moderna República capitalista industrializada. Mas os meios que usou junto com seu ministro da Fazenda, Rui Barbosa, levou a séria crise financeira. Os fazendeiros e as empresas estrangeiras, obviamente contra o processo de industrialização, passaram a fazer oposição a Deodoro que substituiu Rui Barbosa pelo barão de Lucena, um monarquista conservador. Ao contrário do que se esperava com a troca, ou seja, manter-se no poder, passou a enfrentar também a oposição dos reformistas e industrialistas. Diante disso, tentou um golpe e acabou renunciando a favor de seu vice, marechal Floriano Peixoto.

Floriano (1891-1894) representava a consolidação do novo regime, com executivo forte e centralizado. Em seu governo tem-se um breve domínio da classe média, da burguesia e de uma política econômica industrializante. Incentivava a expansão urbano industrial estimulando importação de máquinas, matérias-primas e insumos, desagradando o setor agrário que preferia ver os recursos canalizados para suas atividades.

Palmares: a luta pela liberdade

1. Quilombos, uma forma de resistência

A escravidão no Brasil existiu por mais de três séculos. O início da colonização foi marcado pela escravização dos índios, mas no decorrer do século XVII, a mão-de-obra negra substituiu a indígena nas áreas agroexportadoras. Onde a escravidão negra vigorou, a resistência a ela existiu. David Davidson (apud FUNARI,1996, p.28) diz que “a resistência do negro à escravidão foi característica marcante da história dos africanos nas colônias americanas, e os escravos responderam à exploração com má vontade, a sabotagem ao trabalho, a revolta ou a fuga para os quilombos.”

O Dicionário do Brasil Colonial (HERMANN, 2000, p.494), nos informa que, a palavra “quilombo” é originária do banto “kilombo” e significa “acampamento” ou “fortaleza” e foi usada pelos portugueses para denominar as povoações construídas por escravos fugitivos. Essa forma de resistência foi muito comum no Brasil durante o período da escravidão, existindo quilombos no Amazonas, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Sergipe, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Em outras áreas da América, os quilombos também existiram. Na América Espanhola foram chamados de palenques ou cumes; na América Inglesa, maroons e na América Francesa, grand marronage.

Os quilombos não tiveram tamanho e estrutura homogêneas. Formados a partir da fuga de alguns escravos, poderiam abrigar uma dezena de pessoas e funcionar como grupos armados ou alguns milhares de indivíduos, possuindo uma estrutura complexa, como os quilombos de Palmares, Ambrósio e Campo Grande.

Para Luiz Roberto Lopes (1988, p.49), os quilombos distinguiram de qualquer outra modalidade de resistência à escravidão por dois motivos: amplitude (tentativa de criar uma organização social diferente) e caráter coletivo (não foi apenas um gesto desesperado individual com as outras modalidades).

Planejamento urbano no Brasil-Colônia: grandes cidades e pequenas vilas

1. Introdução

Durante todo o processo colonizador do Brasil foram criadas diversas cidades, vilas, vilarejos, capitais grandes e pequenas. Contudo, não surgiram, simplesmente ao acaso; em sua grande maioria foram inicialmente planejadas em sua configuração original, amplamente influenciadas por uma arquitetura lusitana medieval: aglomeradas no litoral, a construção de cidades em acrópole se impôs. O Brasil foi descoberto no auge do renascimento urbano e comercial, um dos processos responsáveis pelas grandes navegações, contudo a sua estrutura civilizatória se fez sob o signo do medievo lusitano, que acaba por traçar o perfil dos projetos urbanos (MARX, 1980, p.20).

A cidade lusitana colonial quinhentista foi planejada como entreposto comercial e militar, mas com o crescimento da economia e a tendência de aglomeração urbana, esse planejamento parece sair do controle das estruturas jurídicas responsáveis pela regulamentação e manutenção da ordem urbana colonial. A partir daí, o sistema urbano entra em crises, por trazer, dentre outros fatores, freqüentes desconfortos aos seus habitantes.

A problemática da urbanização colonial parece surgir, então, de um grande crescimento, aliado a um sentimento temporário, por parte dos colonizadores, que viviam sob o signo do provisório (ARAÚJO, 1997, p.31), ao contrário do que acontecia nas pequenas vilas. Essas parecem manter sua estrutura inicialmente planejada, devido ao pequeno aumento populacional que sofrem e da ausência de um planejamento militar de defesa (fortes e acrópole), típica dos centros urbanos litorâneos. Existe, porém, uma grande cidade que não obedeceu às regras portuguesas de construção e nem perdeu suas estruturas mediante o processo de crescimento urbanizador: Recife parece ser exceção se considerada a sua origem flamenga.

Contudo, tanto Recife, quanto Salvador, Vila Rica, Rio de Janeiro e Mariana, apesar de suas diferenças, estão vinculadas às necessidades políticas e comerciais das metrópoles e da própria colônia, o que é fator fundamental no entendimento dos traçados estruturais e legislativos do planejamento urbano colonial. O planejamento urbano não se desvincula da dinâmica econômica mercantil.

A visualização dos centros urbanos pode ser bem caracterizada por relatos de viajantes estrangeiros, mapas e plantas baixas da época que remontam um mundo urbano de “clima e gente infernal” habitado pelo “povo mais grosseiro, ingrato e atrevido da América” (Cartas da Bahia. Relatos do Marquês de Lavradio, 1768).

Os “tenentes” entram em cena

1. A República Velha: uma breve contextualização

A República Velha ou Primeira República é delimitada por duas intervenções militares – 1889 (Proclamação da República) e 1930 (Revolução de 1930) -, mas elas não foram as únicas no período. José Murilo de Carvalho (1977, p.185) relaciona 16 intervenções das Forças Armadas nesse período e dentre essas, a Revolta do Forte de Copacabana ocupa um lugar de destaque, por ser a primeira ação do movimento, que a partir da década de 30, ficaria conhecido como Tenentismo(1) e que contribuiria para o fim da República Velha.

O Brasil da República Velha era economicamente agrícola. Nosso principal produto era o café, seguido pela borracha, açúcar e outros produtos agropecuários. Essa predominância agrícola se refletia na ocupação dos trabalhadores. O censo de 1920 apontava que, dos 9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões (69,7%) se dedicavam à agricultura, 1,2 milhão (13,8%) à indústria e 1,5 milhão (16,5%) aos serviços (FAUSTO, 1996, p.281-282).

Mesmo sendo o carro-chefe da economia brasileira, a produção cafeeira passava por crises repetidamente, com queda de preços no mercado internacional e excedentes não comercializados. Por isso, desde 1906, com o Convênio de Taubaté, o Governo Federal praticava uma política econômica de valorização do café, comprando os excedentes para manter o preço do café em um nível satisfatório para os cafeicultores.

Apesar da manutenção da estrutura econômica agro-exportadora, as duas primeiras décadas do século XX viram um incremento na industrialização, observável pela comparação das estatísticas industriais de 1910, com 3.424 fábricas e 159.600 operários, e de 1920, com 13.336 fábricas empregando 275.512 operários (BASBAUM, 1997, p.99). Contudo esse crescimento precisa ser relativizado, pois a maior parte das indústrias eram dos setores alimentício e têxtil (67,8%), enquanto o desenvolvimento das indústrias de base era pequeno. Como exemplo, somente em 1921, a primeira grande indústria siderúrgica no Brasil foi criada, a Belgo-Mineira, que possuía apenas um alto-forno, o que demonstra a fragilidade do setor industrial brasileiro.

Outro importante ponto a ser destacado é a urbanização (multiplicação e crescimento dos núcleos urbanos), que conjuntamente com o crescimento demográfico alterava a face urbana do Brasil desde meados do século XIX. Esse fenômeno que estava ligado à expansão da cafeicultura e posteriormente ao crescimento industrial, diversificava a sociedade ampliando as classes médias urbanas e o proletariado e fornecia um público e possíveis votos para políticos que quisessem escapar do controle oligárquico.

Politicamente, o Brasil do início do século XX ainda podia ser chamado de República do Café-com-Leite. Os dois principais estados da União, São Paulo e Minas Gerais, detinham a hegemonia política, secundados pelos demais estados. Essa preponderância era mantida por uma máquina eleitoral, que se estendia por todo o país, mergulhando suas raízes na terra.
Era como uma pirâmide em cujo ápice se encontrava o Presidente da República, vindo logo abaixo o Partido Republicano Paulista e os Partidos Republicanos Estaduais;e na base do arcabouço, o coronel e sua família, amigos, parentes e dependentes, constituindo as famosas oligarquias estaduais, pequenos Estados dentro do Estado, que centralizavam em suas mãos, nos sertões, os três poderes fundamentais da República: legislavam, julgavam e executavam. […]

Tal era a estrutura política do país. Daí nasciam os deputados e senadores estaduais e federais, e o Presidente da República. […]

O interior do país, sujeito a esse regime, concentrava 70% da população e, por mais livres que fossem os eleitores das cidades, a votação do interior, produto das das máquinas eleitorais, os sobrepujava (BASBAUM, 1997, p.190-191).

Foi nesse quadro que a jovem oficialidade do Exército inconformada com a situação política do país se revoltaria várias vezes a partir de 1922, criando o movimento de rebeldia militar mais profundo e duradouro da República.

Notas

(1) Vavy Pacheco Borges em Tenentismo e Revolução Brasileira mostra com o termo “Tenentismo” foi criado após a Revolução de 30.

O Bandeirantismo

1. Introdução

O Bandeirantismo marcou profundamente a história de São Paulo e do Brasil. No início do século XX, os historiadores paulistas Alfredo Ellis Júnior e Afonso Taunay se encarregaram de construir o mito do bandeirante como heróis, desbravadores do sertão, alargadores do território nacional. Os bandeirantes estão até hoje em nomes de ruas, edifícios, praças e estátuas. Mas será que a história dos bandeirantes foi tão gloriosa como nos fazem crer?

Entender os principais aspectos do bandeirantismo é o objetivo maior dessa pesquisa. Para atingi-lo analisaremos o desenvolvimento econômico da capitania de São Vicente, o motivo pelo qual São Paulo se tornou a principal base das bandeiras, a organização das bandeiras, os tipos de expedições e suas respectivas características. Esses são os principais aspectos abordados por esta pesquisa.

No Purgatório mas o olhar no Paraíso: o degredo inquisitorial para o Brasil-Colônia

1. Introdução

No início da época Moderna, período do expansionismo geográfico e cultural ibérico, o universo mental do colonizador europeu representou a colônia brasileira como o local perfeito do Paraíso terrestre: terra abundante, pródiga, o luxuriante éden perdido. Uma vez vislumbrado o novo território, tornou-se natural identificá-lo com o “Jardim das delícias”, local da natureza generosa onde o mel e o leite escorriam copiosamente.

Simultâneo ao maravilhoso Paraíso e ocupando o mesmo espaço no mundo fantástico do europeu expansionista, o Inferno foi também assimilado à colônia brasileira: sítio medonho onde a natureza humana era freqüentemente identificada com o próprio diabo.(1)

Virtudes e pecados conviviam lado a lado. O divino e o demoníaco constituíam na colônia partes opostas da mesma fé que se amalgamavam nas crenças e práticas religiosas quotidianas. A assimilação da colônia recém descoberta ao Paraíso e ao Inferno sofreu, sem dúvida, influência iconográfica concebida pelo cristão europeu, no qual o Paraíso representava a morada de Deus e de sua corte celestial. O divino é associado à felicidade, à abundância e ao regozijo eterno: ícone da beleza, luminosidade e harmonia. O Inferno representava o Paraíso às avessas; lócus demoníaco associado à tortura, penúria e danação perpetuada: gritos, prantos e ranger de dentes.

Na concepção católica sobre o além-morte, entre a glória do Céu e o fogo ardente do Inferno, situa-se o Purgatório: lugar de depuração dos pecados através de penas com duração limitada estabelecidas de acordo com o grau e o peso das culpas. Estado intermediário; estado de purificação onde as almas esperam o momento da visão beatífica de Deus.

Com grande percepção, Laura de Mello e Souza, inspirando-se na Visão do Paraíso de Sérgio Buarque de Holanda, atribuiu à colônia brasileira uma nova imagem. Através do íntimo manuseio das fontes, sobretudo dos cronistas coloniais e de vários documentos das Inquisições do Santo Ofício, Laura de Mello e Souza (1987, p.21) apresenta o outro lado da moeda: a colônia diabólica e infernalizante. Ultrapassando dialeticamente o Paraíso e o Inferno, o seu capítulo “Novo mundo entre Deus e o Diabo” abriu inéditas perspectivas para explicar os comportamentos vividos na “Terra de Santa Cruz”. Associando-a ao Purgatório recém edificado na cultura popular e erudita do homem europeu, o Brasil tornou-se um dos lugares onde a Metrópole portuguesa lançaria a sua gente indesejável: “toda a escuma turva das velhas civilizações” (PRADO, 1972, p.155 apud SOUZA, 1987, p.81). O Brasil, colônia-purgatório, funcionou através do degredo, como lugar de depuração dos pecados e foi a “panacéia” das mazelas do Reino (SOUZA, 1987, p.72). Terra onde os “desvios cometidos na Metrópole eram purgados […] através do degredo; colonos desviantes, hereges e feiticeiros eram, por sua vez, duplamente estigmatizados por viverem em terra particularmente propícia à propagação do Mal” (SOUZA, 1987, p.17).(2)

Notas

(1) Ver SOUZA, Laura de Mello e, “Natureza: predominância do edênico”, p.32-49 e “Humanidade: predominância da demonização”, p.49-72. In: O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

(2) No livro de SOUZA, Laura de Mello e: Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, a autora aprofunda a relação entre crenças religiosas e colonialismo.

Bandeiras históricas brasileiras

1. Apresentação

O que é uma bandeira nacional? O Brasil possuía uma bandeira nacional antes de sua independência política em 1822?

Com estas questões em mente iniciamos a pesquisa sobre as Bandeiras Históricas Brasileiras.

Segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1999), bandeira nacional é um “pedaço de pano, ordinariamente retangular, de uma ou de diversas cores, às vezes com um emblema e até uma legenda, e que serve de distintivo da nacionalidade ou de indicativo da sua soberania.” Partindo dessa definição percebemos que:

1. Se pensarmos que uma bandeira nacional “serve de distintivo da nacionalidade” e que “nacionalidade” é o “complexo dos caracteres que distinguem uma nação, como a mesma história, as mesmas tradições comuns, etc.”, acreditamos, que durante o período colonial (1500-1822), o Brasil não possuía uma bandeira nacional que servisse de emblema da nossa nacionalidade, já que esse símbolo representava uma nação européia (Portugal), e que apesar de ter contribuído de forma marcante com suas tradições culturais para a formação de nossa nacionalidade, não é a única cultura a ter feito isso. Portanto, apesar das semelhanças inegáveis entre Brasil e Portugal, nossa nacionalidade foi e é diferente da nacionalidade portuguesa.
2. Mas, se por outro lado, achássemos que uma bandeira nacional é para uma nacionalidade o “indicativo da sua soberania”, perguntaríamos: a nação brasileira era soberana? Trocando em miúdos: será que nossa existência não dependia de uma ordem superior? É claro que nossa existência dependia dos objetivos e determinações portuguesas, por isso, acreditamos que não possuíamos uma bandeira indicativa de nossa soberania antes de 1822.

Após esta explicação, podemos afirmar que nossa bandeira nacional só passou a existir após a independência política do Brasil, em 1822. Com isso, se fôssemos falar das bandeiras nacionais brasileiras, teríamos apenas quatro: as bandeiras do Reino do Brasil, do Império do Brasil, do Governo Provisório Republicano e a Republicana. Entretanto, decidimos apresentar também, as bandeiras históricas luso-brasileiras, ou seja, as bandeiras portuguesas utilizadas pelo Brasil, por força de nossa situação colonial entre 1500 e 1822.

Antiimperialismo: imagens sediciosas nos arquivos do DEOPS

1. Introdução

Todo o material utilizado neste trabalho foi desenvolvido com a documentação apreendida ou produzida pela Polícia Política de São Paulo através da Delegacia de Ordem Política e Social – o DEOPS, que atuou entre os anos de 1924 a 1983, até ser extinto. Esse material, arquivado em prontuários e dossiês, manteve a classificação instituída segundo a própria polícia, que organizada para a repressão, valia-se de fichas nominais e remissivas que nos remetem a uma série de personalidades de renome e assuntos referentes tanto ao panorama nacional como ao internacional, fornecendo materiais para um estudo no campo da história das idéias, das especificidades dos regimes totalitários, e da arte desenvolvida no período.

Sob o olhar vigilante do DEOPS, podemos perceber a história de centenas de pessoas, classificadas por critérios políticos como os comunistas, integralistas, anarquistas, nazistas, por grupos étnicos como os judeus e negros ou mesmo criminosos comuns, religiosos e estudantes, todos rotulados de subversivos da ordem conforme a lógica da desconfiança; onde qualquer atitude, objeto ou documento se prestava para comprovar as ditas idéias subversivas.

Agosto de 1954

1. Apresentação

A presente monografia tem como recorte temporal o mês de agosto de 1954, durante a crise do Estado Nacional-Populista, no governo de Getúlio Vargas (1951-1954).

O objetivo básico desta monografia é demonstrar qual a influência que a imprensa teve sobre a população, durante o desenrolar dos acontecimentos que levaram ao suicídio de Vargas, através de uma discussão bibliográfica com base nos principais artigos e jornais de Curitiba feitos durante o mês de agosto de 1954. Visa-se saber, também, qual a imagem mítica que a imprensa deste período tentou construir/destruir de Vargas, antes e depois do suicídio.

A questão do poder na Colônia

1. Introdução

A administração da Colônia, foi um assunto bastante discutido pela historiografia brasileira antiga, passando para segundo plano, a partir de 1960, com o predomínio de estudos socioeconômicos e posteriormente de temas culturais.

Os que se propuseram a estudar a questão do poder na colônia não chegaram as mesmas conclusões. Para uns a tradição lusitana de um Estado forte, fez com que na Colônia prevalecessem os interesses estatais sobre o privado. Para outros o poder local, do latifúndio, foi mais forte que a ação estatal, conseguindo diluir e fragmentar a ação deste.

As generalizações para períodos longos, como é o caso da colonização do Brasil, são quase sempre desmentidas por acontecimentos particulares, contudo são válidas enquanto interpretações gerais. De maneira geral, pode-se afirmar, que houve uma predominância do poder local ao longo dos dois primeiros séculos de colonização e uma reação centralizadora no decorrer do século XVIII.

A questão do poder na Colônia não deve e nem pode ser resumida à ação estatal, pois o poder na colônia possui diversas formas e agentes, tanto na esfera pública como na privada, tendo-se que levar em conta também as longas distâncias que tornavam ainda mais difíceis de serem cumpridas as ações centralizadoras do governo.

Agosto de 1954

1. Apresentação

A presente monografia tem como recorte temporal o mês de agosto de 1954, durante a crise do Estado Nacional-Populista, no governo de Getúlio Vargas (1951-1954).

O objetivo básico desta monografia é demonstrar qual a influência que a imprensa teve sobre a população, durante o desenrolar dos acontecimentos que levaram ao suicídio de Vargas, através de uma discussão bibliográfica com base nos principais artigos e jornais de Curitiba feitos durante o mês de agosto de 1954. Visa-se saber, também, qual a imagem mítica que a imprensa deste período tentou construir/destruir de Vargas, antes e depois do suicídio.

A questão do poder na Colônia

1. Introdução

A administração da Colônia, foi um assunto bastante discutido pela historiografia brasileira antiga, passando para segundo plano, a partir de 1960, com o predomínio de estudos socioeconômicos e posteriormente de temas culturais.

Os que se propuseram a estudar a questão do poder na colônia não chegaram as mesmas conclusões. Para uns a tradição lusitana de um Estado forte, fez com que na Colônia prevalecessem os interesses estatais sobre o privado. Para outros o poder local, do latifúndio, foi mais forte que a ação estatal, conseguindo diluir e fragmentar a ação deste.

As generalizações para períodos longos, como é o caso da colonização do Brasil, são quase sempre desmentidas por acontecimentos particulares, contudo são válidas enquanto interpretações gerais. De maneira geral, pode-se afirmar, que houve uma predominância do poder local ao longo dos dois primeiros séculos de colonização e uma reação centralizadora no decorrer do século XVIII.

A questão do poder na Colônia não deve e nem pode ser resumida à ação estatal, pois o poder na colônia possui diversas formas e agentes, tanto na esfera pública como na privada, tendo-se que levar em conta também as longas distâncias que tornavam ainda mais difíceis de serem cumpridas as ações centralizadoras do governo.

Uma ameaça chamada Canudos

1. Introdução

A passagem do Império para a República não provocou, como se sabe, mudanças estruturais na concentração de renda e terra no Brasil. O poder das oligarquias agrárias mantinha-se inalterado e foi até mesmo reforçado a partir da Constituição de 1891 que, através do federalismo, favoreceu o mandonismo local.

É neste contexto que se inserem movimentos sociais de reação como Juazeiro, Canudos e Contestado. Canudos se coloca como melhor exemplo, pois foi o primeiro a ultrapassar o caráter religioso e atingir instâncias maiores, preocupando-se com o social e o material, na busca de melhores condições de vida para os sertanejos.

O presente trabalho se apresenta no sentido de mostrar que Canudos não foi um movimento isolado, fruto de fanáticos religiosos, mas uma convulsão social, reflexo das desigualdades e da exploração tão maldosamente presentes em nossa História. E sua destruição, fruto do desespero de uma elite que via no Arraial uma ameaça a seus privilégios.

O Período Regencial

1. A Regência Trina Provisória

Com a abdicação do imperador em 7 de abril de 1831, criou-se uma situação provisória. Enquanto o herdeiro do trono, D. Pedro de Alcântara, não atingisse a maioridade, o país seria governado por regentes. Portanto, de 1831 a 1840, o Brasil viveu o chamado Período Regencial, ou as Regências, como alguns historiadores preferem.

Apesar de sua pequena duração cronológica, 9 anos, esse período foi de intensa agitação. Lutas políticas e violência social foram as grandes marcas desse momento histórico. Luta política, pelas constantes disputas entre as diversas facções da elite sobre as questões da centralização ou descentralização do Estado brasileiro, ou ainda, pelo controle do núcleo do poder. Violência social, pelo número de revoltas acontecidas nesse período, envolvendo essa própria elite e o povo, desejoso de maior participação na vida política do país.

No mesmo dia da abdicação de D. Pedro, a Câmara se reuniu para escolher aqueles que governariam o país. Como a maioria dos deputados estava em suas províncias, a Câmara resolveu escolher uma Regência Provisória (Regência Trina Provisória), composta de três membros: o senador Nicolau de Campos Vergueiro, o militar Francisco de Lima e Silva, e um representante da família real, o marquês de Caravelas, José Joaquim Carneiro de Campos.

A partir do dia 7, o cenário político brasileiro sofreu uma reorganização, com o aparecimento de três “partidos” ou grupos políticos:

a) Liberais Moderados: formado pela elite agrária, esse grupo desejava manter seu poder social e reforçar o seu poder político impedindo o ressurgimento de um poder autoritário, como o de D. Pedro I. Agrupados na Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional, e propagando suas idéias através do jornal, Aurora Fluminense, eram chamados por seus opositores de “chimangos”, uma ave de rapina comum no sul do país, ou seja, uma ave que caça os mais fracos.
b) Restauradores: grupo formado pelos portugueses integrantes da burocracia, militares e comerciantes. Não aceitando a renúncia do imperador, desejavam o retorno de D. Pedro I ao trono com a esperança de readquirirem seus privilégios. Reunindo-se na Sociedade Conservadora, eram chamados de “caramurus”, em referência ao apelido dado pelos tupinambás ao português Diogo Álvares, náufrago que teria atingido as costas baianas em 1510. Esse grupo divulgava suas idéias através do jornal O Caramuru.
c) Liberais Exaltados: formados também pela elite, mas com alguns membros representantes das classes médias. Esse grupo defendia reformas políticas mais profundas, tais como, a abolição definitiva do Poder Moderador, a extensão do direito do voto, o fim do Conselho de Estado e da vitaliciedade do Senado e um maior poder para as províncias. Pelo fato de utilizarem da população mais pobre para conseguir apoio, foram denominados de “farroupilhas”, ou seja, aqueles que andam maltrapilhos.
Esse grupo divulgava suas idéias através dos jornais, A República, A Malagueta e O Sentinela da Liberdade e se reunia na Sociedade Federalista. Foram esses três grupos que durante os anos iniciais do Período Regencial lutaram pelo poder político.

Com a escolha da Regência Trina Provisória foram tomadas algumas atitudes: suspensão do Poder Moderador, já que o mesmo só podia ser exercido pelo imperador, e este tinha apenas 5 anos. Como conseqüência imediata dessa atitude, a Câmara ficou impossibilitada de ser dissolvida. A população percebeu rapidamente que os regentes não tomariam nenhuma medida democrática e partiram por conta própria à ação: agitações na rua, ataques aos portugueses identificados com D. Pedro, depredações e comícios foram constantes.

O Primeiro Império

1. As guerras de independência

Raramente ouvimos falar das lutas por nossa independência. Parece que tudo ocorreu de forma pacífica, e o pior, sem a participação do povo. É verdade, que o Partido Brasileiro foi muito hábil em conduzir nossa independência, sem a participação popular nas principais decisões. É verdade, que mesmo ficando independente de Portugal, nosso governante seria o filho do rei dessa mesma nação. E é verdade também, que as lutas por nossa independência não foram tão violentas e longas como aconteceram com os nossos vizinhos latino-americanos, mas não podemos deixar de lado, a participação da população brasileira, mesmo quando essa independência não tenha significado liberdade e igualdade sociais para a maioria do povo brasileiro.

Desde a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, o clima nas forças militares era de competição. No Exército, enquanto os portugueses ocupavam os postos mais altos, os brasileiros ficavam com os mais baixos. Acusações ocorriam dos dois lados: os brasileiros acusavam os portugueses de autoritários e arrogantes e os mesmos acusavam os brasileiros de despreparados. Na Marinha a situação era pior, pois praticamente todos os postos eram ocupados por portugueses.

Quando a Revolução do Porto aconteceu e mostrou seus reais interesses em relação ao Brasil e D. João teve que voltar a Portugal, a insubordinação explodiu, com os brasileiros não aceitando as ordens dos oficiais portugueses, e estes se recusando a aceitar as ordens do príncipe-regente D. Pedro. Após o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822, iniciou-se a formação de um Exército brasileiro, mas a desconfiança na qualificação militar e na sua lealdade provocaram a contratação de mercenários para ajudar nas lutas de terra e mar. Rapidamente chegaram os oficiais estrangeiros com seus comandados. Entre eles, os ingleses Cochrane, John Taylor e John Grenfell; o francês Pedro Labatut e o português Carlos Lecor. Após o 7 de Setembro, as lutas pela independência ocorreram onde a presença lusitana era maior: Bahia, Grão-Pará, Maranhão e Cisplatina.

Bahia

Com a Revolução do Porto, a população da Bahia dividiu-se e os conflitos entre brasileiros (contra a recolonização) e portugueses (a favor da recolonização) aumentaram. Quando as Cortes portuguesas nomearam o general português, Madeira de Melo, para governar a província os conflitos armados tiveram início. A partir de 14 de fevereiro de 1822, “A cidade vira um grande campo de batalha. Brasileiros e portugueses buscam controlar seus pontos estratégicos, usando de extrema violência. Na perseguição a um grupo de brasileiros, soldados portugueses invadem o convento da Lapa, assassinando a abadessa Joana Angélica, que heroicamente o defendia”(SILVA, 1995, p.151). Após cinco dias de combate, os portugueses anunciaram o controle de Salvador, enquanto os brasileiros comandados por Manuel Pedro se refugiaram na região do Recôncavo Baiano.

Com o apoio de latifundiários, organizaram-se os batalhões patrióticos, formados por combatentes da capital e do interior da Bahia. Destacou-se então, a baiana Maria Quitéria, que se alistou nos batalhões patrióticos. Lutando corajosamente contra o machismo existente na época e os portugueses, obteve o posto de cadete e após a guerra recebeu das mãos do imperador a comenda da Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul.

Em 22 de setembro de 1822, teve início a reviravolta. Na Câmara Municipal de Cachoeira foi proclamada a independência, instalando-se um governo paralelo. Os brasileiros foram auxiliados pelos enviados de D. Pedro, o general Labatut e o almirante Lord Cochrane, que cercaram a cidade de Salvador, impossibilitando-a de receber alimentos e munições. Em abril de 1823, a situação de Salvador era dramática, faltavam alimentos e as doenças matavam os mais fracos. Em 2 de julho de 1823, o general Madeira de Melo entregou sua rendição. Os brasileiros haviam libertado a Bahia e garantiam a independência.

Grão-Pará

A Revolução do Porto também provocou reações contraditórias na província do Grão-Pará. Inicialmente, portugueses e brasileiros se uniram com a decisão das Cortes de criar uma monarquia constitucional, porém, quando as Cortes decidiram recolonizar o Brasil, o padrão de reação se repetiu: brasileiros contra as decisões das Cortes, de um lado, e portugueses, a favor das Cortes, de outro. Em abril de 1823, chegou de Portugal, o brigadeiro José Maria de Moura para governar a província. Em 1º de março, os primeiros combates tiveram início, porém as tropas portuguesas reagiram com violência. Várias pessoas morreram e foram feridas e 267 foram presas.

Em agosto de 1823, D. Pedro I enviou a Belém, um navio comandado por Grenfell. Usando de astúcia, anunciou que uma grande esquadra estaria chegando a Belém e que, qualquer resistência por parte dos portugueses seria inútil. Com medo da ameaça, os portugueses não reagiram e a província de Grão-Pará se incorporou ao Império do Brasil em 12 de outubro de 1823. Contudo a mentira não durou muito. Como a esquadra não chegava, os portugueses reiniciaram as perseguições aos simpatizantes da independência. A violência iniciada pelos portugueses foi revidada com mais violência pelos brasileiros. Grenfell resolveu agir para acabar com os confrontos e convocou a população para uma reunião em frente ao palácio do governo. Com a população reunida, escolheu cinco soldados ao acaso, e mandou executá-los. Depois prendeu 256 militares no porão de um navio, onde morreram sem ar e sem água. Assim, Grenfell apaziguou a província.

Maranhão

A província do Maranhão era também uma região com forte presença de portugueses. Por isso, ao saber da independência, se colocou contrária a ela. Apesar disso, lentamente os brasileiros foram conquistando o apoio de várias cidades e povoados maranhenses e os portugueses foram ficando isolados. No entanto, a capital, São Luís, permanecia controlada pelos portugueses. Enviada pelo Rio de Janeiro, uma frota comandada por Lord Cochrane aproximou-se de São Luís fingindo ser um reforço português. Cochrane conseguiu desembarcar seus homens e aprisionou alguns chefes militares portugueses. Usando-os como reféns, conseguiu conquistar o controle da cidade. No final de agosto de 1823, o Maranhão se incorporava ao Império.

Cisplatina

Ocupada desde 1816 pelas forças de D. João, a Banda Oriental foi rebatizada como Cisplatina. Após a independência, a disputa entre tropas brasileiras e portuguesas pela posse da região começou. Comandadas pelo português Carlos Lecor, que resolveu apoiar D. Pedro, as tropas brasileiras tiveram que recuar para o Rio Grande do Sul, pois os portugueses, chefiados por D. Álvaro da Costa, conseguiram controlar Montevidéu, capital da província. Reunindo 1800 homens, Lecor contra-atacou. Cercando Montevidéu, as tropas portuguesas, formadas por 2 mil homens resistiram bravamente, mas a chegada de três navios, comandados por David Jewett, começaram a desequilibrar as ações. Em 18 de novembro de 1823, os brasileiros tomaram a cidade e mantiveram a Cisplatina unida ao Império.

A independência do Brasil

1. Napoleão, Portugal e a Inglaterra

O processo de independência brasileiro teve relação direta com os acontecimentos europeus do início do século XIX, principalmente com o bloqueio continental, decretado por Napoleão Bonaparte. Tentando derrotar sua grande rival, a Inglaterra, Napoleão atacou-a por mar até ser derrotado na Batalha de Trafalgar em 1805. Percebendo, que a marinha e a posição insular da Inglaterra possibilitavam sua defesa, Napoleão decretou o Bloqueio Continental em 1806, onde todos os países europeus estavam proibidos de comercializar com os britânicos. Caso essa determinação fosse desobedecida, o país seria invadido e ocupado. É aí que entra Portugal.

Parceiro comercial do reino britânico de longa data, “Portugal representava uma brecha no bloqueio e era preciso fechá-la.”(FAUSTO, 1996, 120-121) Diante dessa situação, Portugal se transformou na peça fundamental dessa luta. Se, Portugal aceitasse as imposições francesas, não seria invadido, mas perderia as mercadorias industrializadas inglesas e tão necessárias para a vida daquele país. Mas, se não aderisse ao bloqueio, teria o seu território invadido pelas tropas de Napoleão. Para resolver essa situação estava no governo português, o príncipe-regente D. João, já que, sua mãe, a rainha D. Maria I, era doente mental e não governava desde 1792.

A solução encontrada foi a fuga da corte portuguesa para sua colônia mais rica, o Brasil. No dia 29 de novembro de 1807, partiu de Lisboa, escoltada por tropas inglesas, uma esquadra de 36 navios com cerca de 10 mil pessoas, entre a família real portuguesa, nobres e altos funcionários. No dia seguinte, as tropas francesas lideradas pelo general Junot invadiram Lisboa.

O Golpe contra a Realidade

Este trabalho é parte de uma pesquisa sobre os perigos que estiveram associados a crianças e adolescentes no século XX. Aqui focalizo certas tensões decorrentes das novas modalidades de comportamentos de jovens que, nos anos 1960, desafiavam valores instituídos e abriram espaço para práticas instituidoras de outra moral e de outros costumes. Retomá-las constitui uma oportunidade de interferir no debate sobre a juventude de nosso dias, explorando as possibilidades de recriação do legado que nos ficou dos ‘anos rebeldes’.

As apreensões suscitadas pelos movimentos da juventude nos anos 1960 assumiram múltiplas formas. Os efeitos desses movimentos dificilmente poderiam ser isolados e destacados de uma série de práticas que se tecem numa urdidura tensa e complexa. Todavia, é possível configurar certos momentos históricos a partir da correlação de forças que faz convergir os temores nascidos em diferentes âmbitos numa direção determinada. No Brasil, o Golpe de Estado de1964 foi um desses fatos polarizadores de tensões sociais, sendo que um pólo se impôs sobre o outro. O medo do comunismo, seguindo uma tradição de quase meio século, esteve associado ao medo da “perda da propriedade”, da “perda da liberdade”, da “dissolução da moral e dos bons costumes”, do “ateísmo”, dentre outros que a propaganda dos ideólogos do golpe evocava. As marchas da família com Deus pela liberdade, organizadas por setores da Igreja Católica, constituem uma demonstração eloqüente do tipo de convergência que se estabeleceu entre temores distintos, nivelados pela ameaça de um “inimigo insidioso” que poderia ser visto em quaisquer das manifestações menos enquadráveis nos modelos aprovados. Em tal conjuntura, os comportamentos de adolescentes e dos jovens de maneira geral chegaram a ser interpretados como mais uma das formas de manifestação da influência do “mal”.

Depois do golpe e da subseqüente repressão aos estudantes, artistas e intelectuais, houve um período de ressurgimento de manifestações de repúdio ao regime, inclusive na grande imprensa, que tivera papel de destaque na articulação da derrubada do governo João Goulart (AQUINO, 1999; SKIDMORE, 1988). Uma efervescência cultural se fazia sentir no plano da música, do cinema e do teatro, sendo que as manifestações artísticas problematizavam a derrota política, repensando o país, a papel anteriormente atribuído aos intelectuais, as articulações feitas com a cultura popular e com a cultura de massas (XAVIER, 1993). Reinventavam-se tradições ao tempo em que “deglutiam-se” influências.

Numa outra direção, assistia-se ao incremento do mercado de bens voltados para o público adolescente, como os filmes estrelados por Roberto Carlos, os discos e os programas da chamada jovem guarda. Mas um leque de novas programações não deixava de dirigir-se ao segmento juvenil ampliado, trazendo as estrelas do momento para os auditórios, mostrando as diferentes manifestações musicais dos jovens, incluindo as transmissões dos festivais da canção popular.

Nessas circunstâncias, setores afinados com a nova ordem estabelecida não cessavam de lançar seus tentáculos sobre os grupos tradicionalmente vistos como passíveis de enquadramento normalizador, além de intentarem expandir seu poder de interferência na sociedade com ímpeto revigorado. A preocupação com as novas formas de expressão dos jovens e com a maneira pela qual assuntos tais como relacionamento entre casais, sexo e divórcio eram abordados na imprensa deu ensejo a algumas intervenções drásticas de juizes de menores do Rio de Janeiro e de São Paulo, como foi o caso do embargo de dois números da revista Realidade.

Na edição de novembro de 1966, Realidade celebrava o sucesso de rapazes e moças que estavam compondo e cantando “as coisas da vida, amor e liberdade” e que disputavam o gosto da juventude com o ié, ié, ié (ritmo associado aos Beatles e, no Brasil, ao grupo de cantores que se reunia no programa Jovem Guarda). O autor da reportagem, Narciso Kalili, definia a diferença entre os dois grupos de compositores em termos políticos e culturais: os jovens da MMPB (movimento de música popular brasileira) falavam “também dos problemas políticos, sociais e econômicos de seu tempo”, porque “eram universitários e possuíam informação”(1). A reportagem prosseguia traçando outras diferenças entre os dois grupos, que em termos musicais estariam ligados a tradições distintas: uma essencialmente vinculada à indústria de discos e outra à “música urbana nascida da imaginação popular”. O popular era, portanto, um valor a ser realçado na oposição ao industrial, ainda que os cantores deste estilo também estivessem obtendo sucesso na indústria do disco. Esta era uma forma de ver as coisas, uma percepção inclusive não partilhada por todos os integrantes do grupo do MMPB.

O artigo constituía, na verdade, uma tomada de posição num debate que articulava preferências na área da música a opções políticas e existenciais. Uma marca daqueles dias. Discutia-se os novos comportamentos entre os casais, a pílula anticoncepcional e o divórcio. Nesta mesma edição da Realidade, a pesquisa, “o que os brasileiros pensam do divórcio”, indicava, entre outros aspectos, uma aparente contradição: os velhos eram mais favoráveis ao divórcio que os jovens. Num momento em que ocupavam a cena pública – enquanto estudantes em manifestações políticas, como artistas nos festivais de música ou nos programas de televisão e em outras formas de comportamento nas ruas das cidades – os jovens não poderiam deixar de ser inquiridos sobre os temas polêmicos do momento. E a revista, cujo projeto editorial apostava no interesse de seus leitores pela “realidade”, tinha divulgado, na edição de agosto, reportagem intitulada “a juventude diante do sexo”, cuja repercussão indicava o quanto o tema permanecia envolvido em tabus. Na edição de novembro, a seção cartas continuava trazendo as opiniões sobre a abordagem do tema, configurando uma polêmica entre os leitores que saudavam a iniciativa da revista e aqueles que a execravam. As cartas favoráveis à reportagem valorizavam-na, ressaltando sua fundamentação na “coleta de dados reais”, a utilidade das informações que veiculava e sua função esclarecedora, inclusive para os pais que tinham dificuldade em abordar o assunto com os filhos. Por outro lado, os detratores da pesquisa falavam em nome dos valores enraizados na tradição conservadora. O Sr. João Miguel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, por exemplo, acusava os donos da revista de estarem “sacrificando os mais sagrados valores da civilização”. Um missivista que se identificou como “pai de quatro rapazes” expressava sua preocupação pelos filhos, pois não queria para nora “uma moça que já sabe demais”. Quaisquer que fossem as origens das cartas condenando a reportagem, elas constituíam sintoma de que o sexo ainda era tabu em muitos setores da população, principalmente no que se referia à sua prática entre jovens.

Dentre aqueles que publicamente se manifestaram contra a reportagem, estava o Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Alberto Augusto Cavalcanti de Gusmão, que proibira a divulgação da segunda parte da pesquisa em número subseqüente da revista. Em resposta aos editores, que lhe remeteram as cartas de leitores contrários à sua medida, o Juiz de Menores enviava correspondência à redação da revista, mostrando a quantidade de manifestações de apoio que ele próprio havia recebido de associações católicas, e solicitando aos editores da revista a divulgação integral de sua decisão. Nela, o ato de proibição da segunda parte da pesquisa adquiria foros de algo solidamente fundado em preceitos jurídicos, como se pode ver pelos trechos selecionados a seguir:

A lei 2083 autorizando o Juiz de Menores a declarar o caráter obsceno de quaisquer publicações não fornece o conceito de obsceno. À falta de definição legal deve-se criar uma definição doutrinária, procurando atender aos fins sociais que a lei se dirige e às exigências do bem comum. […] Acrescenta Nelson Hungria que “não é necessário que o ato represente uma expansão erótica ou vise à excitação da lascívia alheias” […] A condição indispensável para a configuração do ilícito está na publicidade, o que verificado, dá lugar ao surgimento do ultraje público do pudor (art. 233 do C. P.) O conceito de obsceno, portanto, quer na lei penal quer na lei de imprensa (art. 53) não pode deixar de ser o mesmo. A sensibilidade humana é variável. Casos haverá em que se torna difícil afirmar que o sentimento médio de pudor foi atingido. É particularmente significativo que a lei tenha atribuído ao juiz de menores, e não a outro magistrado, a competência para declarar a obscenidade. Há neste fato, de maneira implícita, mas inteiramente desvelada, uma recomendação especial, um intuito pedagógico. O pronunciamento judicial, em jurisdição toda especializada, há de atender ao espírito que norteou o Código de Menores. É totalmente indispensável que o juiz tenha presente, ao decidir, aquelas circunstâncias que ‘façam temer influência prejudicial sobre o desenvolvimento moral, intelectual ou físico de menores e possam excitar-lhe perigosamente a fantasia, despertar instintos maus ou doentios, corromper pela força de suas sugestões’ (art. 128, p. 4º do Código de Menores). Parece evidente, em face desse raciocínio, que a lei, ao induzir à conceituação de obsceno, foi mais severa e colocou o conceito ao nível da minoridade. Já não seria possível dizer, com Nélson Hungria, que “obsceno é o que atrita com o sentimento médio de pudor ou os bons costumes”. A lei foi mais longe e colocou o julgador em guarda, também, contra o atentado pedagógico. Ora, firmado estes pressupostos, é evidente que a matéria publicada na revista Realidade de agosto corrente, sob o título “A juventude diante do sexo”, é de natureza obscena. […][grifos do autor].

O trecho é indicativo de que a função pedagógica atribuída à jurisdição de menores teve que ser realçada no argumento como uma forma de isentar a esfera jurídica de extrapolação no julgamento de valor. Nem mesmo o sentimento moral médio – uma das fórmulas consagradas pelo positivismo jurídico – funcionava com muito destaque no argumento do Juiz de Menores. Como ele o indicou, era “particularmente significativo que a lei tenha atribuído ao juiz de menores, e não a outro magistrado, a competência para declarar a obscenidade.” De fato, caso a lei estivesse sob a alçada da justiça comum – com seu “clássico” formalismo jurídico – seria mais complicado proibir, de forma sumária, uma revista. Portanto, naquele contexto em que comportamentos inovadores podiam ainda se expressar e ser debatidos publicamente (depois do golpe de 1964, mas antes do AI-5), o Juiz de Menores ocupava novas funções estratégicas.

Em janeiro de 1967, novamente a revista Realidade foi objeto de embargo. Desta feita foi o Curador de Menores de São Paulo, Luiz Santana Pinto, que requeria ao Juiz de Menores a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. Tratava-se da edição dedicada à mulher brasileira hoje, que estava nas bancas desde a madrugada de 30 de dezembro de 1966. O curador tinha sido ágil e expedira seu requerimento no mesmo dia. O Juiz de menores acolheu a sugestão e despachou ordem para que os serviços de vigilância e ronda especial apreendessem os exemplares, solicitando para isto a colaboração de Delegacia de Costumes.(2) No dia seguinte, o Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, também determinava a apreensão dos exemplares da edição de janeiro. Os responsáveis pela revista recorreram da decisão. Seu advogado em São Paulo, logo em 3 de janeiro, impetrava mandado de segurança junto ao presidente do Tribunal de Justiça daquele estado. No Rio de Janeiro, outro advogado entrava com recurso na justiça carioca. Na edição de fevereiro, os leitores de Realidade puderam ver as razões apresentadas pelas partes envolvidas.

O despacho do Juiz de menores de São Paulo no Diário Oficial era sumário, dizendo que a publicação continha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”. Face a tal acusação, o advogado da revista em São Paulo julgava que o mandado de segurança era o instrumento mais adequado à defesa, pois o pronunciamento do juiz se fundara no artigo 53 da lei de imprensa, que “configura a hipótese de medida de caráter administrativo de autoridade judicial, contra a qual a lei não dá recurso, nem possibilita o pedido de correição visto que não há tumulto (Reg. Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, art. 360)”. Na Guanabara, o juiz Cavalcanti de Gusmão não adotou o estilo lacônico de seu colega de São Paulo. Pelo contrário, lembrava que a revista voltava aos temas que haviam levado a pronunciamentos anteriores daquele juízo, e que, fugindo ao propósito comum do periodismo no Brasil – informar corretamente, divulgar as coisas e as idéias dentro do panorama de nossos costumes, aceitando ou combatendo moderadamente nossos hábitos e nossas tradições – resolveu bem ao contrário, encetar uma campanha e realizar uma verdadeira revolução radical no terreno da moral familiar” [grifos meus].

Acusava a revista de não fazer apenas pesquisas, mas defender teses, exaltar a mãe solteira, combater a virgindade. Extrapolava a atribuição de obscenidade às reportagens, agregando a esta a acusação de “atentado aos bons costumes”, ato de “despotismo da imprensa livre”, que ministrava “em doses maciças de divulgação, uma doutrina moral que não foi acolhida pelos órgãos de soberania da nação – as casas legislativas – e por isto mesmo não estava nas leis”.

Por seu turno, o advogado da revista no Rio de Janeiro retomava ponto por ponto a acusação de Cavalcanti Gusmão. Tentava valer-se das “armas” do próprio acusador, fazendo voltar a lei de imprensa contra o juiz que falara em seu nome, argumentando que este extrapolara sua função de atribuir caráter obsceno à matéria, chegando a arbitrar acerca da moral e dos bons costumes. Na seqüência, sua argumentação trazia à tona encíclicas papais para mostrar que “a autoridade máxima” em assuntos de família e de moral olhava com tolerância as transformações do mundo. O apelo a documentos da Igreja tinha ainda o sentido estratégico de se apoiar na instituição cuja alta hierarquia se colocara ao lado do regime instaurado em 1964, inclusive promovendo as “marchas da família, com Deus pela liberdade”, um dos dispositivos de mobilização para a derrubada do governo de Jango. O advogado sustentava que a informação sobre a realidade era a única forma, inclusive, de proteger os jovens contra os perigos que se encontravam na própria realidade do mundo, dizendo:

REALIDADE não está pregando que as mulheres deixem de ser virgens, não está pregando que as mulheres devam se esquivar do casamento, não está pregando que as mães devam abandonar seus filhos, não está incutindo, por qualquer forma, que o amor filial desapareça ou diminua, ou que os laços de família se afrouxem. Mostra as experiências de muitas mulheres a respeito desses aspectos de desagregação da família, para que todas que se encontram à beira do perigo, evitem dar o passo fatal” [grifos meus].

A defesa, portanto, fincava seus argumentos no terreno em que se movia a acusação, nos aspectos legais, mas também no que dizia respeito aos valores que eram acionados. E os dois lados – acusação e defesa – não deixavam de recorrer a uma tríade consagrada: a lei, a moral e a ciência. Entretanto, divergiam acerca do conteúdo, da forma e da maneira de funcionar de cada uma delas. Assim, face à acusação de infração da lei da imprensa pela revista, seu advogado revidava alegando abuso do poder pelo juiz; face à proibição da reportagem em nome da defesa da moral e dos bons costumes, sustentava que o acesso à informação era a via capaz de evitar o “passo fatal”; face à delimitação de um lugar estrito para a informação científica, exaltava a divulgação da ciência no espaço público da imprensa. O interessante a observar quanto ao uso da tríade consagrada é que, num momento dito de “recesso” da cidadania, portarias e despachos de ministros terminavam adquirindo o estatuto de lei. Assim, em 28 de agosto de 1964, o Ministro da Justiça tinha determinado o reforço da atuação dos juizes de menores no setor de diversões públicas, autorizando-os a suspendê-los liminarmente.(3) Por seu turno, os guardiães da moral instituída aliavam-se no acatamento às leis de exceção na tentativa de impedir que comportamentos instituidores de outra moral pudessem se impor e legitimar-se com o respaldo da formação de uma imaginação pública que lhe desse um sentido instituinte. Assim, na batalha de idéias que se travava, a revista Realidade usava o recurso da autoridade da ciência, argumentando que a própria Igreja Católica curvava-se ao poder temporal da ciência, afirmando, num de seus documentos:

A perturbação atual dos espíritos e a mudança das condições de vida estão vinculadas a uma transformação mais ampla das coisas. Esta faz com que as ciências matemáticas e naturais ou as que tratam do próprio homem adquiram preponderância crescente na formação do pensamento, enquanto as artes técnicas, derivadas daquelas ciências, influenciam na ordem da ação. Este espírito científico produz um sistema cultural e modos de pensamento diferentes dos anteriores. A técnica progride a ponto de transformar a face da terra e já tenta subjugar o espaço interplanetário. A inteligência humana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o tempo. Sobre o passado, pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro pela arte prospéctica e pela planificação. O progresso das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só contribui para que o homem tenha um conhecimento melhor de si mesmo, mas também ajuda a influenciar diretamente na vida da sociedade, usando métodos técnicos. Ao mesmo tempo, o gênero humano prevê e cada vez mais regula o próprio crescimento demográfico” [grifos meus].(4)

Na era do expert, os “doutos em ciência” vinham a ser os profissionais das diversas áreas especializadas que os cursos universitários estavam formando, em número crescente. Numa conjuntura onde o autoritarismo se radicalizara e os comportamentos inovadores eram “patrulhados” por segmentos que se colocavam a tarefa de erradicar o “mal”, valer-se da opinião dos profissionais da Sociologia, da Psicologia, da Medicina, entre outros, era também uma forma de lutar contra este patrulhamento. Os especialistas também compunham equipes encarregadas de enquetes sobre gostos e comportamentos, que alimentavam não só a imprensa, mas a indústria. As pesquisas de opinião, procurando distinguir as diferenças de comportamento em termos de uma estratificação “social” composta de três classes, “alta, média e baixa” (retraduzidas às vezes nas três primeiras letras do alfabeto), alimentavam (como vêm alimentando até hoje) os debates, reforçando ainda o valor da estatística como medida da “realidade”. Fundamentada em pesquisa desse tipo, a revista Fatos e Fotos de janeiro de 1968 veiculava reportagem cujo título era “A mãe moderna não pode ser quadrada”. Os dados permitiam ao repórter concluir que “entre as mães cariocas de classe média, não se sente grandes variações na maneira de educar, quer elas morem na Zona Sul ou na zona Norte, quer trabalhem fora ou não”. A diferença residia na idade: as mais novas, de 20 a 30 anos, rejeitavam os padrões através dos quais foram educadas e consideravam que a tarefa de educar filhos deveria ser dividida com os pais; as mais velhas, entendiam que a educação era “um problema mais próximo da mãe” e não eram tão críticas face à educação que elas próprias haviam recebido, embora considerassem necessária uma atualização.

O que vinha a ser considerado uma mãe moderna? A socióloga convocada pela reportagem dizia:

mãe moderna é aquela que procura orientar os filhos de acordo com as exigências da sociedade moderna e com os próprios valores morais que ela aceita. Certos valores estão sendo criticados, isto é, podem ser aceitos ou não, dependendo da formação da mãe e da educação que ela der aos filhos desde pequenos. Mas a mãe de hoje é sobretudo aquela que prepara os filhos para assumirem a maior liberdade possível em todos os setores da vida social. E liberdade é algo consciente, que inclui, necessariamente, a noção de responsabilidade para consigo própria e com a sociedade”.(5)

Era também aquela que estava “sempre preocupada e quase sempre incerta sobre o que deve[ria] fazer”, entre a “liberdade sem medo” e a “liberdade sem excesso”.(6) As incertezas, portanto, giravam em torno dos limites e da extensão da liberdade, o que implicava em decidir quando, como e relativamente a quê os filhos poderiam ter suas próprias escolhas. “Desenvolver a iniciativa, a independência e as próprias opções é recomendável de modo gradual, mas não sem diálogo, nem com a abdicação do papel e das responsabilidades da mãe”, afirmava um psicólogo.(7) Se a maioria das mães podia concordar que as crianças deveriam ter liberdade de escolha em certos itens – brinquedos, amigos, divertimento –, as dúvidas poderiam ser muitas quanto, por exemplo, ao horário de dormir ou ao que fazer com a mesada. Quanto aos adolescentes, também havia concordância entre as mães sobre a possibilidade de escolha de itens tais como amigos, maneiras de se vestir, cursos e colégios, mas as meninas ainda eram objeto de preocupação especial e “a mini-saia e o biquíni ainda [eram] casos para muitas discussões e lágrimas, principalmente na Zona Norte”.(8)

O foco das angústias e incertezas das mães era a liberdade sexual, principalmente no que dizia respeito às meninas. Segundo a reportagem, “mesmo as mães mais compreensivas em outras questões se revelam unânimes em considerar que ‘a sociedade brasileira ainda não está preparada para permitir liberdade sexual à mulher’”. Liberdade e felicidade deveriam caminhar juntas, de maneira que a felicidade dos filhos não fosse a alternativa à infelicidade dos pais. Caberia então às mães, no entender de uma “escritora de 30 anos”, não identificada pela revista, “defender em pé de igualdade” a sua felicidade e a de seus filhos.

Enfim, o vínculo experimental(9) que a nova geração mantinha com o presente fazia emergir comportamentos inovadores, bem como reações adversas nos que se atribuíam a missão de zelar pela “moral e os bons costumes”, como certos Juízes de Menores. Assim, em 1968, ano que emblematizou a “insurgência juvenil”, os Juízes de Menores se reuniram em Brasília no seu III Encontro Nacional. E, num momento de intensa agitação estudantil, em que mesmo os secundaristas (menores, portanto) eram trancafiados nos porões da repressão, os juizes se alongavam em infindáveis discussões em torno de um projeto de Código de Menores que focalizava sobremaneira a questão dos adolescentes em “perigo moral”, reforçando o poder dos juizes de menores para intervir nos bares, casas noturnas e publicações.

Por seu turno, muitos pais, assustados com o comportamento dos filhos, especialmente das garotas – que se igualavam aos jovens do sexo masculino, fumando, bebendo e mantendo relações sexuais com seus namorados – corriam aos Juizados de Menores na esperança de que ali encontrassem apoio para a normalização dos filhos “ingovernáveis”. Alguns desses jovens chegaram a ser trancafiados nos internatos mantidos ou patrocinados pela Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – Funabem, onde adolescentes em “perigo moral” conviviam com “infratores” e ”portadores de condutas anti-sociais” em experiências que dificilmente poderiam ser chamadas de educativas.

A pesquisa nos arquivos da atual Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal nos permitiu localizar, entre outros aspectos, os focos de tensão que se expressaram como choque geracional ou confronto de valores no transcurso de três décadas (de 1960 a 1990), identificando os deslocamentos ocorridos em relação a tais focos. Nesta exposição, restrita a certos episódios ocorridos nos anos 1960, procuramos captar um momento em que as transformações nos costumes associadas ao comportamento da nova geração foram abordadas como “desvios” face à normalidade ou “atentados” aos poderes vigentes. Momentos como esse são vividos de forma tensa e contraditória por moças e rapazes ainda na adolescência, e também por homens e mulheres assustados com as experiências de seus filhos, em campos anteriormente reservados aos adultos, quando não mais podem se fiar na tradição, mas ainda desconfiam da validade das mudanças em curso. Fato é que muitos vieram a construir suas vidas apoiados na experiência vivida, enquanto outros provavelmente sucumbiram. Contudo, o legado da geração que se vinculou ao mundo dessa maneira experimental foi a criação de práticas instituidoras de novas formas de liberdade e, portanto, de novos encargos e responsabilidades. Face às tensões de hoje e ao retorno da discussão sobre a responsabilidade, a memória dos anos rebeldes pode funcionar como um legado para os que assumem o compromisso e a responsabilidade de passar para os que vieram depois de nós a força da tradição não conformista.

Notas

* Trabalho apresentado na mesa redonda “Juventude, Sociedade e Transformações Históricas” integrante da programação do XXI Simpósio Nacional de História organizado pela ANPUH em Niterói, em julho de 2001. Constitui síntese de um capítulo de minha tese de doutorado intitulada SOB O SIGNO DO PERIGO: O ESTATUTO DOS JOVENS NO SÉCULO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Brasília: Departamento de História da UnB, 2000.

(1) “A Nova Escola do Samba”, reportagem de Narciso Kalili, Revista Realidade, novembro de 1966, p. 117. Na capa, a revista trazia foto de alguns representantes da nova geração de cantores de música, como Nara Leão, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Toquinho, “Magro” (do MPB4) e Rubinho (do Zimbo Trio). No interior, uma grande reportagem sobre os representantes da “nova escola do samba”, todos jovens, entre 18 e 25 anos, que adquiriam expressão pública nos festivais de música brasileira.

(2) Cf. “A Edição Proibida: acusação e defesa”, reportagem que integrava a edição de fevereiro de 1967 da revista Realidade. A reportagem informava que o despacho de 30 de dezembro, atribuído ao Juiz de Menores, não estava assinado por ele. Contudo, no dia seguinte, o Diário Oficial de São Paulo publicava a decisão do Juiz de Menores da capital paulista, Sr. Artur de Oliveira Costa. Cf. p. 6.

(3) Conferir em Anais do III Encontro Nacional de Juizes de Menores. Brasília, Serviço Gráfico do Senado Federal, 1968, p. 71.

(4) O advogado João de Oliveira filho, na defesa da revista Realidade junto à justiça carioca, disse ser este um trecho da encíclica papal Gaudium et Spes.

(5) Segundo a reportagem, estas eram as palavras da socióloga Leda Barreto.

(6) Fazia-se menção ao livro de A S. Neill, famoso por ter criado uma escola regida pela democracia – Summerhill – onde as regras, as atividades e os conteúdos eram discutidos e estabelecidos pelos próprios alunos. Cf. Neill, A S. Liberdade sem medo. 12ª edição, São Paulo: Ibrasa, 1971.

(7) Estas eram as palavras, segundo a revista, do psicólogo Eliézer Shneider.

(8) A minissaia foi lançada em 1967, pela figurinista inglesa, Mary Quant. Durante um certo tempo o termo vinha separado com hífen, como na reportagem. O “dicionário do Aurélio” o coloca sem hífen, minissaia.

(9) Conferir o sentido do termo em Marialice Forachi. A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1972.

O Brasil e suas capitanias

O Brasil do século XVI, sob o domínio de Portugal, a partir de 1534, nos reinados de D. Manuel I, D. João III e D. Sebastião, foi dividido em Capitanias Hereditárias. No reinado de D. Manuel, foi criada a 1ª Capitania insular no Brasil, a de São João, na ilha hoje denominada de “Fernando de Noronha”, em homenagem a D. Fernão de Noronha, seu descobridor. Esta Capitania, era uma adaptação do sistema de doação de bens da Coroa portuguesa, de que foram exemplos as ilhas desabitadas de Madeira, Porto Santo, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Situadas no Oceano Atlântico, no decorrer do século XV.

No reinado de D. João III, entre 1534 e 1536, a título de propagação da fé católica junto aos nativos, da necessidade de povoar as terras recém-descobertas e cuidar melhor de sua defesa contra as ambições estrangeiras que já se faziam presentes, foram criadas 14 capitanias no Brasil.

Não pela ordem de importância, mas pela direção norte-sul da configuração da costa brasileira, foram as seguintes as Capitanias:

– Maranhão: em dois lotes, com 50 léguas de costa o primeiro e 75 o segundo, foram doadas ao navegador Aires da Cunha, que se associou ao escritor João de Barros, Feitor e Tesoureiro da Casa das Índias e o segundo lote, concedido a Fernão Álvares de Andrade, Tesoureiro-mor do Reino
– Ceará: com 40 léguas de costa, foi doada ao fidalgo Fernando Álvares de Andrade. Rio Grande (do Norte): com 100 léguas de costa, foi doada a João de Barro, Tesoureiro da Casa da Índia.
– Itamaracá: com 30 léguas, foi doada ao navegador Pero Lopes Santos.
– Pernambuco: com 60 léguas, foi doada a Duarte Coelho, navegador e soldado da Ásia.
– Bahia de Todos os Santos: com 50 léguas de costa, foi doada a Francisco Pereira Coutinho, soldado da Índia.
– Ilhéus: com 50 léguas de costa, foi doada a Jorge Figueiredo Corrêa, Escrivão da Fazenda.
– Porto Seguro: com 50 léguas de costa, foi doada a Pero de Campos Tourinho, rico proprietário e navegador.
– Espírito Santo: com 50 léguas de costa, foi doada a Vasco Fernandes Coutinho, soldado do Oriente.
– São Tomé: com 30 léguas de costa,foi doada a Pero de Góis, companheiro de Martim Affonso de Souza em sua expedição empreendida entre 1530 e 1532.
– São Vicente: com 100 léguas de costa, foi doada a Martim Affonso de Souza.
– Santo Amaro: com 10 léguas de costa, foi doada a Pero Lopes de Souza.
– Santana: com 40 léguas de costa, foi doada também a Pero Lopes de Souza.

Além da Ilha de São João (Fernando de Noronha), foram criadas mais duas Donatarias insulares: a da Ilha de Itaparica e a da Ilha de Trindade, a primeira na Bahia de Todos os Santos e a segunda ao largo da costa do Espírito Santo. A Ilha de Itaparica no início era apenas uma sesmaria, mas em 1536 foi convertida em Donataria em favor de D. Antonio de Ataíde, 1º Conde de Castanheira; a Ilha de Trindade foi doada a Belchior Camacho, em 1539. E por fim, a última Donataria, criada no governo de D. Sebastião I, a de Peroaçu, Paraguassú ou Recôncavo da Bahia, doada a D. Álvaro da Costa, filho do governador D. Duarte da Costa. Foram criadas outras Donatarias, mas todas elas de pouca ou nenhuma importância.

Foi no decorrer do século XVIII que grandes alterações foram feitas nos mapas administrativo e geográfico do Brasil. Sob a inspiração do Marquês de Pombal, no reinado de D. José I, iniciava-se a liquidação do regime de donatarias, com a aquisição por parte da Coroa, ou por simples confisco, das onze Capitanias Hereditárias que ainda se mantinham em poder de seus proprietários. Foram elas: Ilha Grande de Joanes (ou Marajó), Cametá e Cumã ( ou Taquitapera), Caeté (ou Gurupé),(estas situadas no Estado do Maranhão, que havia sido criado em 1621. Com governo próprio, separado do governo-geral sediado em Salvador), Itamaracá, Ilhéus, Porto Seguro, Campos de Goitacazes e N.S. da Conceição de Itahaém. Estas Capitanias foram incorporadas ao território de outras, e, no caso das Capitanias de Ilhéus e de Porto Seguro a beneficiária foi a Capitania da Bahia de Todos os Santos, quando o Brasil já tinha quase 300 anos de descoberto. Formou-se, afinal, a Bahia de hoje. A liquidação das Capitanias teve seu início em 1790, quando uma lei extinguiu o poder e a jurisdição dos antigos donatários. Antes dessa liquidação em massa, seis outras Capitanias já tinham sido extintas, por compra ou confisco pela Coroa, ou simples abandono. Foram elas, as Capitanias de Pernambuco, Espírito Santo, Fernando de Noronha, São Vicente, Santo Amaro e Paranaguá.

Com relação à Capitania de Ilhéus, antes de sua incorporação à Capitania da Bahia de Todos os Santos ela já havia sido negociada com a Coroa pelo donatário D. Antonio José de Castro, Almirante da armada portuguesa, em troca do título, para si, de Conde de Rezende, e da nomeação do seu filho D. José Luiz de Castro, 2º Conde de Rezende, para o cargo de Vice-Rei do Brasil, cargo este que exerceu no período de 1790 a 1801, além de uma pensão mensal vitalícia que foi fixada posteriormente em 2 mil cruzados. O custo das terras desta Capitania dá a medida de quão valiosas elas eram.

Entre as modificações havidas no período colonial, uma delas que mais influiu nos mapas administrativo e geográfico do Brasil foi a divisão do território entre dois governos autônomos entre si. Tal divisão ocorreu quando, em 1573, Luís de Brito de Almeida foi nomeado pela Coroa para o cargo de Governador apenas da Capitania de Ilhéus para o norte, com sede em Salvador. Da Capitania de Porto Seguro para o sul o governo passou a ser exercido pelo Dr. Antonio de Salema, tendo como sede o Rio de Janeiro, vigorando esta duplicidade de governo por apenas 5 anos.Era a experiência de um país e dois governos, obviamente fadada ao fracasso.

Novamente unido o governo do Brasil, a partir de 1578, exerceu-o Lourenço da Veiga, o primeiro a ter o título de Governador-Geral, tendo Salvador como sua sede.

Em 1763, por ordem do unitarista Marquês de Pombal, sob a alegação de que as regiões do Centro e do Sul do país eram mais importantes e desenvolvidas do que as do Norte, bem como pela necessidade de o governo ficar mais perto das suas fronteiras com os territórios da América do Sul dominados pelos espanhóis, efetuou-se a transferência da sede do governo do Estado do Brasil, de Salvador para o Rio de Janeiro. A partir daí, Salvador deixou de ser a capital do Brasil.

Tiradentes e a bandeira da Conjuração

Quem propôs o triângulo para a bandeira da nova república idealizada pelos conjurados de 1789 foi Tiradentes. O Alferes Joaquim José da Silva Xavier nutria profunda devoção para com a Santíssima Trindade. Os documentos da época e abalizados historiadores mostram como foi sua intenção enfocar o mistério trinitário. No auto de perguntas a ele dirigidas se registra este tópico: “E falando ele respondente, em que a nova República que se estabelecesse devia ter bandeira disse que, como Portugal tinha na suas armas as cinco chagas, devia a nova República ter um triângulo, significando as três pessoas da Santíssima Trindade […]”

No auto de perguntas ao Coronel Ignácio José de Alvarenga Peixoto se constata que este não estava certo em casa de quem surgiu a conversa sobre as bandeiras, “que o Alferes Joaquim José da Silva Xavier tinha ideado para servirem na nova premeditada República, que eram três triângulos enlaçados em comemoração da Santíssima Trindade […]”

No auto de perguntas a Álvares Maciel se verifica que “o Alferes Joaquim José da Silva Xavier […] tinha ideado o modo da bandeira, que haviam de ser três unidas em uma (sic) significando as três Pessoas da Santíssima Trindade […]”. Na reflexão prévia que antecede a “Memória do êxito que teve a conjuração de Minas […]” há neste trecho referente a Tiradentes:

Atestam os religiosos franciscanos e entre eles os de melhor autoridade, testemunhas oculares de todos os fatos da cadeia, que este homem se mostrava convencido da gravidade de seus pecados […] Quando se tratava com ele de oferecer a morte como sacrifício a Deus, apressava-se, e era necessário detê-lo; quando se lhe dizia que aquilo era o tempo precioso e os bons instantes necessários para amar a Deus, detinha-se e nisso se empregava. Confessando o inefável mistério da Trindade, transportava-se e aproximando-se à forca pediu que só nele falassem.

Dos “Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789 pelo frade que os assistiu de confissão” esse trecho:

Consta da sentença que os infames cabeças da revolução queriam levantar uma república livre e independente, cuja capital seria a vila de São João del Rei, a sua bandeira teria por armas três ângulos em alusão à Santíssima Trindade, cujo mistério era da maior devoção de Tiradentes, se bem que ao réu Alvarenga parecia mais próprio o emblema seguinte: Um índio quebrando as cadeias com a letra Libertas quae sera tamen”.

A estas fontes primárias aditem-se as declarações de historiadores de comprovada competência. Ernesto Ennes, da Academia Portuguesa da História e do Instituto de Coimbra, assevera: ”Decidiu-se sobre a Bandeira que “Tiradentes” propôs ter por símbolo um triângulo, em honra da SS. Trindade”. Lúcio José dos Santos assim se expressou: “Quanto às armas da República, Tiradentes propôs e foi aceito o triângulo, representando a SS. Trindade de que era ele especialmente devoto”. Joaquim Norberto de Souza e Silva diz que a questão da bandeira da Conjuração foi tratada na casa de Cláudio Manoel da Costa, quando “propôs o alferes Joaquim José que se tomassem por símbolo três triângulos entrelaçados em comemoração da Santíssima Trindade”. Fritz Teixeira de Salles também afirma que “a bandeira seria um triângulo, inspirado no símbolo religioso da Santíssima Trindade, devoção predileta de Tiradentes”. Oiliam José escreveu: “Quanto à bandeira para o novo país com que todos sonhavam, aceitou-se, em princípio, a significativa sugestão de Tiradentes no sentido de que ela tivesse um triângulo em honra da Santíssima Trindade, embora Alvarenga divergisse disso e outros circunscrevessem seu desacordo à escolha do dístico destinado a figurar no futuro símbolo nacional”.

Inúmeros outros depoimentos poderiam ser arrolados, como os de K. Maxwell, José Pedro Xavier da Veiga, David Carneiro, todos unânimes a declararem ser uma homenagem ao mistério trinitário o triângulo da bandeira idealizada pelos Conjurados de 1789 por iniciativa de Tiradentes. Ao ensejo do dia 21 de abril tal importante aspecto não pode ser olvidado, pois revela a mentalidade cívico-religiosa do protomártir da independência brasileira.

Troca de amores e favores: senhores e escravos no Maranhão setecentista

1. Introdução

Zambi, meu rei, se foi, mas vai voltar
em cada negrinho que chorar!
Zambi, meu pai, Zambi, meu rei,
última prece que rezou
foi da beleza de viver!
Olorum erê.

Arena conta: Zumbi
Vinícius de Morais(1)

Os documentos transcritos e analisados para efeito deste trabalho consistem um “corpus” de oitenta e um testamentos que fazem parte do Livro de Testamentos (1763-1779) e Livro de Testamentos (1800), treze divórcios, três Justificações de Sevícias, um Auto de Justificação e um Feito Cível. Esta documentação faz parte do Arquivo da Arquidiocese de São Luís e está hoje sob administração do Arquivo Público do Estado do Maranhão.

Em tais documentos resolvemos privilegiar passagens que se referiam à escravidão em seus diversos aspectos; procuramos, por meio de leituras e análises, compreender e resgatar traço das relações entre escravos e senhores no cotidiano da sociedade maranhense setecentista.

Adotamos critérios que vêm sendo utilizados pelo Grupo de Pesquisa que integramos, consistentes em que se privilegie uma visão “de dentro” da colônia, e não uma obtida a partir de documentos destinados à metrópole, hoje conservados em Portugal. Do mesmo modo, esforçamo-nos para que as leituras de fontes secundárias interferissem na nossa visão e conclusões apenas como subsídios, e após a idéia básica sobre o objeto já haver sido por nós concebida a partir dos documentos transcritos. Entendemos que os trabalhos anteriores que abordam o período e o tema já estão realizados e já tiveram suas conseqüências; não nos cabe repisá-los. Já os documentos com que contamos, recém transcritos em sua maioria, não foram utilizados pela historiografia tradicional; cabe-nos, portanto, quase como um dever, explorá-los ao máximo, como originais.

Partimos de que, enquanto na economia açucareira nordestina agroexportadora os padrões sociais têm, desde sua origem, a marca da subordinação ao interesse da política mercantilista reinol, havia um certo descaso da Coroa para com o atual nordeste ocidental, cuja existência devia-se, não a um projeto de exploração econômica e sim à razões geopolíticas consistentes em evitar invasões estrangeiras. Na falta de produtos importados, uma produção “informal” organiza-se para suprir as necessidades da população e, como não gerava proventos para a Metrópole, desfrutava relativa independência quanto às suas políticas. Assim, esta região pôde conhecer um longo período pautado por alguma autonomia e dinâmica próprias.

Para os objetivos de um historiador, esta situação é privilegiada, pois uma sociabilidade que estivesse se configurando espontaneamente com base nessa atividade econômica pôde ter aparecido com maior nitidez no Maranhão que no nordeste oriental, centro da colônia, pois ali estaria mascarada por informações destinadas à Metrópole. Neste quadro, supomos serem visíveis nesta Capitania padrões sociais que poderiam estar mesmo generalizados na colônia mas em outras regiões não teriam visibilidade. Com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão esta situação se altera.

Pode-se dizer que o Maranhão ao longo século XVIII, apresenta duas conjunturas diferentes: anterior e posterior às mudanças administrativas promovidas pelo Marquês de Pombal, entre elas a instalação, em 1757, da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Pretendem alguns historiadores, como Jerônimo de Viveiros, que foi responsável pela entrada da mão-de-obra escrava africana, e que esta só adquiriu peso significativo com o financiamento pela Companhia e a eliminação da concorrência de preadores de índios pela lei de 1755, que aboliu a escravidão indígena. Mas não é isto que se pode constatar nos documentos transcritos e analisados; pelo contrário, neles percebe-se claramente a presença de africanos na Capitania, bem antes de 1757. Aliás, se tais fontes são representativas, o contingente de escravos negros era superior ao indígena na primeira metade desse século.

Embora não possamos chegar idoneamente à afirmações como a precedente, sem dúvida se vê nos documentos que durante algum período a escravidão indígena coexistiu com a africana pelo menos na mesma dimensão. Aliás, o fato não era totalmente ignorado; Mário Meireles, em sua História do Maranhão, não atribui a introdução dos africanos à implantação da Companhia; menciona notícias de navios negreiros pelo menos a partir de 1671. Há indícios de que grande leva de escravos africanos já havia entrado no Maranhão já na segunda metade do século XVII. Sugerimos que a Companhia veio na verdade submeter a monopólio a importação já existente de escravos africanos, e disciplinar a agricultura para que atendesse aos interesses da metrópole.

Assim, durante muito tempo, desde a chegada dos escravos africanos até meados do séc. XVIII, a relação entre senhores e escravos não foi pressionada pelo imperativo de produtividade, como no nordeste oriental; desenvolve-se pautada por solidariedade, vínculos afetivos, contratos e conflitos.

Nos Testamentos aparecem questões relacionadas às alforrias. Em que circunstâncias as recebiam os escravos? Que distinção havia para que estes em alguns momentos fossem herdeiros e noutros figurassem como bens legados? Percebeu-se que senhores, na iminência da morte e desejando pôr suas “almas no caminho da salvação”, tornavam-se benevolentes com escravos, mostrando, ao menos na aparência, que camadas sociais tão diferentes conviviam de forma harmônica. Esboça-se nos testamentos o perfil de um contrato não verbal, com expectativas recíprocas, entre senhores e seus escravos. Pouco se vê de conflitos nestes documentos; os fatos são apresentados como se houvesse uma harmonia familiar entre senhores e escravos, fortemente marcada por um afeto recíproco que envolve desde consangüinidade até concubinatos, passando por reconhecimentos por serviços prestados, assistência na velhice, etc. Tal vínculo afetivo, por mais sincero que seja – e sem dúvida o é, nos testamentos – a rigor mal disfarça o interesse material de obter do escravo um máximo de serviços ou rendimentos, e do senhor a predileção, privilégios e proteção.

Os Divórcios e Justificações de Sevícias desfazem a aparência de contrato, e tornam nítida a estrutura de conflito que ela disfarçava. Além de demarcarem costumes e valores da sociedade colonial – muito mais visíveis na situação de conflito – muitas vezes retratam escravos como pivô de separação conjugal dos seus senhores, tomando partido de um dos cônjuges, buscando dissuadi-los de homicídios (em um caso) ou simplesmente como concubinas, na maioria dos casos, sujeitando-se a tornar-se simultaneamente objeto de zelos por parte de um e de mágoas por parte de outro dos cônjuges. Dois casos registram uma verdadeira subversão da hierarquia entre escravas e senhoras, em que as primeiras tornam-se concubinas dos senhores ou a mando destes empunham relhos para chicotear as senhoras. Aparecem índios, pardos, negros forros e brancos testemunhando de acordo com o que viram ou ouviram, contra ou a favor do senhor ou senhora em litígio.

Ainda nestes documentos percebe-se toda a dinâmica da sociedade, em que um é vizinho do outro, pessoas se encontram para contar casos numa “logéa” ou num armazém, participam de casamento para poder desfrutar da alegria conduzida por uma “assembléia de música”, escutam discussões de vizinhos do quintal de suas casas, ou seja, fatos corriqueiros que mexem com a sociedade, hábitos que têm dia e lugar marcados, como a “noite da iluminação da Ponte da Alfândega”, e retratados por aqueles que vivenciaram seus momentos.

Já as séries “Auto de Justificação” e “Feito Cível” trazem assuntos dos mais variados: no primeiro, o requerente/justificante da causa pretende justificar desde batismo, legitimação de paternidade, estado civil até maus tratos, etc. enfim, pretende-se justificar/provar algo em juízo. O segundo tipo de documento trata de querelas judiciais em que se pretende uma sentença à parte condenada: envolve prestação de contas por não cumprimento de disposições testamentárias por parte dos testamenteiros, queixa de agressão, cartas de crédito e assinação (cobrança de débitos), etc. tudo fazia parte do cotidiano da época e assim era denunciado. Transcrevemos e analisamos apenas um documento de cada, representativos por tratar-se de escravos que de moto próprio estavam recorrendo à justiça.

Concebemos, então, três capítulos. No primeiro “Gozando de sua inteira e real liberdade” – procuramos abordar a referida estrutura de contrato. A pessoa do escravo é apresentada, nas verbas testamentárias de seu senhor, ora como bem legado, ora como recebedor de bens ou alforria; se por momentos aparece como “coisa” ou “bem semovente” por outro é visto como sujeito, capaz de negociar não só com senhores mas também com os demais membros da sociedade. Será principalmente demarcado aqui o restrito espaço histórico para o contrato, em que tentaremos entender e discutir as limitações impostas aos forros para que gozem de suas liberdades da maneira que quiserem. Tentaremos também analisar indícios de conteúdo familiar ou vínculo afetivo nas relações entre escravos e senhores, como elemento definidor da concessão de alforrias.

O segundo capítulo, sob o título de “Tratando-a como sua vil escrava” vai referir-se às situações de conflito existentes entre senhores e escravos; se por um lado traz os maus tratos que estes últimos sofriam por outro mostram, algumas vezes, uma inversão dos papéis sociais que foram outrora definidos pela sociedade escravista. Tentaremos discutir de que forma os maus tratos e a violência podem ser entendidos no contexto em que ocorrem. É uma espécie da ruptura do contrato existente no capítulo anterior.

No terceiro capítulo, “Tal qualidade de gente”, tenta-se apreender a alforria como Rito de Passagem, recompor o universo de lutas do ex-escravo, de que forma este vai ser (re)incorporado como forro à sociedade escravista que o produziu. Trataremos também dos estigmas que ele carrega em virtude de sua “raça”, seu passado e suas origens.

Seguem, portanto, os resultados.

Notas

(1) Nas três vezes em que foi recorrido como epígrafe, aparece integralmente a letra desta música da MPB da década de 30. Alteramos ligeiramente a ordem dos versos para melhor contextualizar entre os capítulos.