Almería, a Espanha esquecida

Almería, a Espanha esquecida
Perto da Costa do Sol e sempre cheia de turistas, a desconhecida região é recheada de parques nacionais, praias intocadas e um deserto fascinante

Cortijo del Fraile, que foi imortalizado na peça Bodas de Sangue
Não vejo cadáveres nem sangue quando empurro a porta rangente do Cortijo del Fraile, vazio e decadente, já pensando em mortes. Amor, honra e vingança – as paixões sombrias e em conflito na Espanha antiga – estão reunidos nesta imponente casa de fazenda que tem como pano de fundo o austero e vulcânico Cabo de Gata. Aqui em Almería, uma região esquecida da Espanha, descobri o cenário do crime de honra que inspirou um dos grandes textos da dramaturgia do país: Bodas de Sangue, de García Lorca. Como tantas outras coisas dessa região milagrosamente preservada, eu também a tenho só para mim.

O cortijo caiado, com as paredes descascando e o campanário torto, é um pedaço da história petrificado. Ali dentro, o telhado cedeu um pouco, mas não sinto cheiro de umidade. Cabo de Gata é o lugar mais seco da Espanha. As construções aqui não apodrecem. Ressecam. Caminho nervosamente sob vigas penduradas, passando por lareiras vazias e molduras de janelas com bolhas de sol, protegidas por barras de ferro enferrujadas. Um pássaro assustado passa como uma flecha por mim, acelerando meu coração enquanto cruzo a porta dos fundos da capela. Foi nesta capela vazia e cheia de teias de aranha que Casimiro Pérez foi rejeitado no altar por sua noiva, Francisca Cañada. Ela fugira naquela manhã com seu amante, Paco Montes. A família de Casimiro buscou a vingança imediatamente. Caçou o jovem casal, ferindo Francisca e matando seu amante com três tiros. Esta é uma das histórias trágicas da Espanha. Lorca ambientou sua versão na fértil Granada. Aqui, na terra árida e acidentada de Almería, faz mais sentido. Porque a beleza dramática de Cabo de Gata provém das mesmas intempéries que tornam a vida mais dura.

Na imensidão mediterrânea, o parque natural de Cabo de Gata é moldado pelas forças primitivas de vulcões e tão carente de chuva, que parece um pedaço da África em solo europeu. É esta singularidade que a Espanha decidiu conservar. Em um país onde a costa foi assolada pelo desenvolvimento, a existência de uma ampla faixa de interior mediterrâneo intacta é um pouco mais do que um presente dos deuses.

“Algumas pessoas aqui ainda se lembram daquele dia”, diz Paco Ubeda, quando lhe pergunto sobre o assassinato de Bodas de Sangue enquanto ele conduz seu rebanho de 1.200 carneiros e cabras na direção do cortijo, para passarem a noite. “A noiva sobreviveu, mas ficou manca. Lembro que ela morava sozinha numa fazenda no fim da rua. Nunca se casou.” Seguimos por um caminho de terra cercado de agaves e palmeiras-anãs, as plantas do deserto que mais crescem nessa terra árida formada por erupções vulcânicas e fluxos de lava há cerca de 8 milhões de anos.

Nos velhos tempos, explica Paco, cortavam-se as palmeiras e o esparto para fazer cestas, chapéus e sandálias. Viajando por um campo aberto pontuado de espartos dourados, suspiro de alívio. Em duas décadas viajando pela Espanha a partir de minha casa em Madri, tenho visto os últimos e poucos paraísos mediterrâneos sendo saqueados pelo homem e por betoneiras. O tapete de tijolos e cimento foi estendido como duas manchas escuras ao longo das costas sul e leste. Esse parque, com seus mais de 60 quilômetros de litoral protegido, impede que as manchas se juntem.

Um refúgio remoto

Almería é “el culo de España”, de acordo com os moradores. “As pessoas costumavam dizer que ficava mais perto de Londres do que de Madri. Pelo menos você podia chegar lá de navio”, explica Miguel Navero, um romancista local. Foi exatamente isso que a preservou. Era longe demais das estradas, dos aeroportos e dos fios de eletricidade para que os responsáveis pelo desenvolvimento se importassem com a região. A água era escassa e sistemas de esgoto não existiam nos vilarejos. Quando Cabo de Gata tornou-se um parque natural, em 1987, a maioria das estradas eram de terra.

Dos penhascos de Amatista se avistam um plácido mar turquesa e uma série de praias e enseadas. Pelo menos desta vez, não há construções e nem mesmo um barco à vista. Este é o Mediterrâneo cru dos escritores românticos que se maravilhavam com um interior intocado pelo progresso no século 19 e no início do 20. Ao entardecer da vila de Cabo de Gata, vejo dois homens remando um barquinho pesqueiro. Eles arrastam o barco até a praia e saem carregando um único balde, cheio apenas até a metade de peixes e uma estrela-do-mar. “Saímos às seis da manhã e isso é tudo o que conseguimos”, diz um deles. “A estrela-do-mar não tem valor. Vou levar para decorar a casa.”

Se a distância manteve Cabo de Gata como um lugar puro, os caprichos de uma família local proprietária de terras também foram cruciais. Falecido em 1976, José González Montoya nunca quis vender suas terras. Sua família ainda é dona de 3 mil hectares da área do parque, mas permaneceu fiel à sua visão de desenvolvimento lento e gradual, em harmonia com o ambiente. “Tenho documentos que mostram que ofereceram à família grandes somas de dinheiro para construírem hotéis e empreendimentos imobiliários”, explica seu sobrinho-neto Jaime Martul, no interior do antigo cortijo da família, hoje transformado em um pequeno hotel, El Sotilo, em San José. “Mas ele gostava disso da maneira como era, e queremos manter assim.”

Um largo e sacolejante caminho de cascalhos parte de San José para as praias virgens onde o velho González se recusava a construir: Genoveses, Monsul, La Cala de la Media Luna. São nomes que os locais pronunciam com reverência, conscientes de o quanto são lugares únicos. Campos de cereais pontilhados de papoulas e plantações de agave e chumbera – um cacto-pera espinhoso – estendem-se pelo vale da Baía dos Genoveses até a praia. “Você tem que manusear os chumbos (as peras) com luvas, porque são muito espinhosos”, explica Javier Navarro.
Mark Read
Set de filmagens Fort Bravo, no deserto de Tabernas
Set de filmagens Fort Bravo, no deserto de Tabernas
Ouro deserto

Com seus amplos espaços abertos, Almería é um dos grandes sets de filmagem do mundo. Peter O’Toole cavalgou pela praia de Monsul em Lawrence da Arábia – um das centenas de filmes rodados em Cabo de Gata e nos desertos extraordinários do interior de Almería. Sigo o caminho para o farol. Essa visão rara na Espanha – uma praia vazia – logo me faz descer de volta à encosta. Escorrego nos seixos, arranho a perna em pequenos espinhos e tento não esmagar as plantas de camomila, com flores amarelas. Minha praia é cheia de pedras, mas poucos metros adiante, só o que vejo à minha frente é areia. Estou tentado a jogar a cautela para o alto e dar um mergulho no mar claro e frio.

Almería é um lugar de extremos. Suas paisagens, aparentemente em constante luta com as intempéries, impressionam pela dimensão e pela brutalidade. Em nenhum lugar isso é mais visível do que no Deserto de Tabernas, um parque natural que avança 40 quilômetros para o interior, a partir de Cabo de Gata. Observando a inexorável aridez do único verdadeiro deserto da Europa, percebo que este é um lugar que poderá nunca precisar da proteção do homem. Isso porque o homem, em geral, tem sido temeroso demais de se aventurar ali dentro.

A visão de um caubói com um chapéu mexicano de abas largas parece, à primeira vista, uma miragem no deserto. Acontece que ele é real – um chamariz atraindo visitantes para um dos sets de filmagem que pontuam o deserto. Quando produtores de filmes europeus querem uma paisagem comparável à dos desertos do Arizona e de Mojave, é para cá que eles vêm – para um lugar onde chove apenas quatro dias por ano e a temperatura gira em torno de 48 graus à sombra, se você puder encontrar alguma.

Não é difícil entender por que Sergio Leone trouxe Clint Eastwood e Lee Van Cleef para essas bandas para fazer faroestes espaguetes clássicos, como O Bom, o Mau e o Feio. Até mesmo cientistas referem-se a essas terras como inabitáveis e improdutivas.

O caminho corta a vegetação baixa, passa por cabanas indígenas e chega a um set de filmagens permanente, Fort Bravo. Um cavalo passa a galope por mim, avançando na direção de um cercado onde há outros cavalos. Uma nuvem de poeira encobre as construções de madeira do set vazio – há desde um banco até uma cantina mexicana.

O lugar já teve dias melhores, mas dá um certo prazer ter todas essas ruas só para mim. À sua porta de entrada, o deserto começa a pregar peças em minha mente mais uma vez. Um pastor de cabras diante de uma casa de madeira parece um caubói de verdade. Seu rosto é envelhecido e marcado. “Ele já apareceu num filme”, brinca o porteiro. “Queriam alguém realmente feio.” O pastor da um tapa na cabeça dele e a conversa prossegue com insultos e tapinhas amigáveis. O verdadeiro ouro de Almería é a água, dizem eles. “Não restou nenhuma ali embaixo”, diz o pastor. “Isso não é verdade”, reage o porteiro. “Tenho água, mas tive de furar cem metros para consegui-la.”

Tempos de glória

Subo alguns montes escarpados. A única casa que encontro está abandonada, assim como a maior parte da área rural de Almería. Em outros lugares, cavernas ainda são usadas como casas. Na periferia do deserto, Esther Calatrava me mostra a caverna transformada por seus avós em casa de fazenda, as paredes brutas e os tetos dos quartos pintados de branco. “A pobreza trazia a criatividade”, explica ela.

Uma estrada sinuosa me leva ao norte do vale do rio Nacimiento, seco. Na vila de Santa Fé de Mondújar, casas-cavernas foram escavadas nas pedras, de onde brotam chaminés. Junto ao rio restam algumas parreiras de uvas, consumidas na Grã- Bretanha durante quase um século, até que o negócio decaiu nos anos de 1970. “Eram uvas de casca grossa, e por isso permaneciam frescas por dois ou três meses”, explica Lorenzo Cara, cujo avô as enviava para a Grã-Bretanha. “Lembro-me muito bem que ele recebia semanalmente um boletim com os preços em Londres.”

No alto do vale, dois paredões de pedra formam uma passagem apertada. Subo um dos lados até Peña del Moro – a fortaleza da caverna de onde um clã de soldados iemenitas controlava a passagem dos governantes muçulmanos na Espanha do século 9. Aquele foi o momento de esplendor de Almería, quando, diz a lenda, “Granada era apenas uma horta”. Depois, o vale foi coberto de amoreiras. Bichos-da-seda infestaram as folhas dessas árvores, transformando Almería na capital europeia da seda.

Uma família de seis pessoas cruza a terra seca num caminhão. Alguns quilômetros adiante, o deserto chega a um fim abrupto: a encosta está repleta de flores amarelas. Tenho a sensação de ser arrastado para um oásis, quase sem conseguir suportar o brilho daquela cor.

Horas depois, me deparo com outra imensidão da Espanha. Estou olhando para a mítica Sierra de Cazorla, Segura e Las Villas. Ela se ergue sobre mim, suas escarpas íngremes de pasto e árvores frutíferas sob paredões de pedra tingidos de alaranjado pelo sol poente.

“Tantos canais e paredões”, descreveu o escritor inglês Richard Ford, referindo-se às mudanças na paisagem espanhola enquanto enfrentava bandoleiros ao cruzar essas terras, no início do século 19. Essa serra é um dos paredões: uma extensão de montanhas cobertas de florestas e bem regadas de água. Seu nome pode não ser familiar, mas é o maior parque natural da Espanha.

Paro na vila serrana de Hinojares, que está realizando a festa de San Marco. Luciano Monge, um aposentado com chapéu de marinheiro, fuma um charuto e explica que está havendo um desfile com a estátua do santo. “Você deveria ficar para a dança”, diz ele. Assisto aos rituais da festa na vila espanhola. Crianças pequenas correm pelas ruas à meia-noite e uma banda toca paso doble, enquanto casais bailam na praça. É uma noite fria de primavera, mas nada vai impedir os moradores de se divertir sob o céu estrelado.

Na manhã seguinte, vou para Quesada, onde os moradores estão se preparando para subir a montanha e visitar o santuário da Virgem de Tiscar, para depois seguir para Cozorla. “No verão, eles cobrem a Virgem de Tiscar com notas de dinheiro”, conta Consuelo Martínez, uma guia que cresceu em uma solitária casa de guarda florestal no alto da serra. “Vi notas de 500 euros espalhadas sobre ela.” Consuelo me conduz pelos caminhos íngremes da serra para mostrar o mundo que ela conheceu enquanto criança. Paquita, uma mulher robusta enviada para cá quando era uma menina frágil, para respirar o ar da montanha, vem conosco. “Eu adorava isso aqui”, diz ela. “Costumávamos pegar rãs e alimentá-las para as águias que os guardas florestais capturavam e vendiam. Eram umas coisinhas assustadoras.”

Há fiéis também em Cazorla, subindo o morro do convento da Virgem de La Cabeza. Outro convento, de San Isicio, fica no meio do vale. Durante uma festa local, as estátuas da virgem e do santo passam a noite juntas. “Sabe como é, assim eles podem se divertir um pouco”, explica Paquita. Consuelo dá gargalhadas. O sagrado e o profano nunca estão muito distantes na Espanha.

Natureza protegida

As estradas nas montanhas estão cheias de pedras que rolaram durante o inverno de chuvas intensas e incomuns. Em El Chorro, falcões encarapitam-se imperiosamente na face da pedra, os olhos brilhantes à procura de comida. O terreno com mato foi escavado por um porco-do-mato faminto, à procura de tubérculos e raízes. Mais uma vez, a natureza selvagem está preservada acidentalmente, e não de propósito.

Um século atrás, a empresa ferroviária estatal precisava de um lugar onde houvesse madeira para os dormentes dos trilhos. O governo expropriou toda a serra. Fazendeiros desceram as montanhas para trabalhar em serrarias e a empresa cuidou das florestas, replantando pinheiros nativos. “Esse lugar é cheio de trilhas de guardas florestais”, explica Consuelo. “Eu me lembro de ficar isolada durante meses. Quando queríamos fazer compras, tínhamos de andar cinco horas a cavalo.”

Nos anos de 1960 e 70, o general Franco, ditador da Espanha, vinha aqui caçar e pescar nos lagos das montanhas. Outros vieram depois dele e hoje a cidadezinha de Cazorla vive de visitantes espanhóis, sendo poucos os que vêm de fora. Como é muito grande, a área esconde rapidamente aqueles que passeiam pelas serras verdes e acidentadas. “Você precisaria de semanas para visitar tudo isso aqui”, diz Consuelo. Quem me dera!
Mark Read
Vista de Tiscar, no Parque Natural de las Sierras de Cazorla
Vista de Tiscar, no Parque Natural de las Sierras de Cazorla
Nosso segredo de viagem número um é uma região com cenário de Velho Oeste, um deserto intocado e praias maravilhosas, que competem com qualquer uma de suas vizinhas superpovoadas. É chamada de “el culo de España”, mas esse “traseiro” merece ser olhado mais de perto.

DICAS BÁSICAS

Como chegar

A Ibéria voa para Almería, partindo de São Paulo, com conexão em Madri. Outra opção é voar até Madri pela TAM e depois seguir até Almería pela Ibéria. O valor da passagem é semelhante.

Passeando

Você precisará de um carro para chegar a alguns dos lugares mais remotos da região. Há locadoras de automóveis no aeroporto de Almería.

Leitura adicional

O guia Andalucia, da Lonely Planet, tem informações detalhadas. Ou então leia a peça dramática inspirada na região, Bodas de Sangue, de Federico García Lorca (R$ 24,90).

TRÊS MANEIRAS DE VIAJAR

Litoral

VER

A Playa de los Genoveses é talvez a melhor praia dessa região de faixas de areias maravilhosamente isoladas. É acessível por uma estrada que segue a oeste da vila de San José.

DORMIR

O Hotel Cortijo El Sotillo é uma casa de campo restaurada no coração de Cabo de Gata, junto ao oceano. Tem 17 quartos coloridos e um excelente restaurante (a partir de € 92).

COMER

Elegante restaurante a pouco mais de três quilômetros ao norte de San José, La Gallineta atrai uma multidão próspera com seu cardápio internacional criativo – o  filé ao molho espesso de xerez é uma delícia (Pozo de los Frailes).

BEBER

Eles fazem uma ótima lula com batatas ao molho de limão, mas La Goleta, em Cabo de Gata, é também um lugar legal para beber cerveja e ver gente (Paseo Marítimo Cabo de Gata).

Deserto

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Festeje o curioso fato de que o Velho Oeste ficava, na verdade, na Espanha, visitando Mini Hollywood, um set de filmagens completo, com banco, tiroteios e forca (€ 16).

DORMIR

O Hotel Rural Cortijo La Alberca é uma adorável fazenda reformada em Nijar, não muito longe da capela de Cortijo del Fraile, que inspirou o livro Bodas de Sangue (a partir de € 82).

COMER

À beira do deserto fica o vilarejo de Alhabia, que abriga o Restaurante Perez, que oferece excelentes pratos regionais, incluindo escargot picante com feijão e repolho (Plaza de la Constitución).

BEBER

A praça central de Nijar, Plaza la Glorieta, é cercada de bares, cafés e restaurantes. Experimente o Café Bar Glorieta ou o Bar e Restaurante El Pipa para saborear umas tapas e algumas geladas.

Parque Nacional

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O Parque Natural Sierras de Cazorla é a maior área protegida da Espanha, com montanhas onduladas, um enorme reservatório de água e veados e porcos-do-mato passeando livres.

DORMIR

Pertinho (a pé) do centro de Cazorla – cidade que é a porta de entrada para o parque natural – o Hotel Guadalquivir é uma hospedaria confortável (a partir de € 43).

COMER

El Mirador Messia de Leiva, na vila de Segura de la Sierra, ao norte do parque, serve alguns dos melhores guisados, chorizos, jamóns e queijos da região (pratos principais a partir de € 6; Calle Postigo 2).

BEBER

Na entrada da vila de Hornos, ao sul de Segura, fica o animado e simpático bar El Cruce, com jardim e uma excelente comida de boteco (Puerta Nueva 27).