A CRIAÇÃO DO BRASIL

Certa vez José Bonifácio de Andrada e Silva disse “Os brasileiros são entusiastas do belo ideal, amigos de sua liberdade e mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. ”

A noção de que pertencemos a uma comunidade nacional nos parece hoje tão clara quanto a de que o céu (brasileiro) é azul. Mas nem sempre foi assim. Apesar de termos expulsado invasores holandeses e franceses e expandido as fronteiras para o Oeste, no início do século XIX não tínhamos a menor idéia do que éramos. Em 1808,Hipólito José da Costa, natural da Colônia do Sacramento (atualmente no Uruguai), publicava em Londres o primeiro número do Correio Braziliense. Dez anos depois, o jornal ainda questionava qual seria o nome apropriado para os naturais do Brasil: brasiliano, brasileiro ou brasiliense? O primeiro era logo descartado por ser a designação dada aos índios desde o início da colonização; o segundo aplicava-se aos comerciantes de pau-brasil; designaria, depois, os portugueses que enriqueceram aqui e voltaram à sua terra; “brasileiro”, lá, virou sinônimo de homem rico. Havia ainda as opções brasílio e brasílico. Hipólito optou por brasiliense – mal imaginava que seria o gentílico dos habitantes da nova capital do país a partir de 1960, como também não imaginava que acabaríamos sendo todos brasileiros mesmo.

No período de 1808 a 1888 – da chegada de d. João à Abolição da Escravatura – o Brasil foi construído, lenta e penosamente, pedra por pedra. Uma soma de acontecimentos, personagens e idéias amoldaria aos poucos a nossa unidade. A instalação da Corte no Rio de Janeiro – mais de 15 mil portugueses se transferiram para o Brasil – promoveu o entrechoque, nem sempre cordial, entre reinóis e indivíduos ainda não “brasileiros”, mas já arraigados à terra. As transformações dramáticas decorrentes deste conflito levariam o país à Independência. Mas ainda havia nesse vasto território forças leais a Portugal, que se bateram contra os defensores da nossa emancipação política durante as Guerras de Independência, nos anos de 1820. Ao contrário do que geralmente se imagina, muito sangue foi derramado nestes embates pela separação entre Brasil e Portugal. Distúrbios antilusitanos também provocaram a Noite das Garrafadas, uma série de manifestações que opuseram “brasileiros” – principalmente estudantes, cadetes e negros – e “portugueses”, e precipitaram a abdicação de d. Pedro I , em 1831.

A Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, afirmava que eram brasileiros todos os portugueses que tivessem permanecido no país após a Independência e houvessem aderido à “causa do Brasil”. Seriam brasileiros também apenas os homens livres nascidos no país, ficando de fora o imenso número de africanos e seus descendentes escravizados. Já por esta época, José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da Independência”, nascido em Santos e formado em Coimbra, tinha uma visão mais pessoal do “brasileiro”:

“Os brasileiros são entusiastas do belo ideal, amigos de sua liberdade e mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. Obedientes ao justo, inimigos do arbitrário, suportam melhor o roubo que o vilipêndio; ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talentos por natureza; de imaginação brilhante e por isso amigos de novidades que prometem perfeição e enobrecimento; generosos, mas com bazófia; capazes de grandes ações, contanto que não exijam atenção acurada e não requeiram trabalho assíduo e monotônico; apaixonados do sexo por clima, vida e educação. Empreendem muito, acabam pouco. Serão os atenienses da América, se não forem comprimidos e desanimados pelo despotismo. ”

Enquanto o rei-menino d. Pedro de Alcântara, de seis anos, aguardava a hora de governar, regentes movimentaram a cena política, numa década em que, segundo alguns historiadores, se esboçou uma “experiência republicana”. Ao mesmo tempo, o país era assolado por uma série de rebeliões violentas, nascidas do sentimento de insatisfação e desamparo diante do poder central, muitas delas com anseios separatistas e republicanos. Ainda não éramos “brasileiros”, mas fomos malês na trágica madrugada do levante de 25 de janeiro de 1835 em Salvador. Nos 15 anos que se seguiram, até 1850, fomos sucessivamente cabanos no Pará, farrapos ou farroupilhas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, sabinos em Salvador, balaios no Maranhão, praieiros em Pernambuco.

A esta altura, um rei culto de 25 anos já estava no poder, ou melhor, no trono: o poder se fazia no embate dos partidos e dos interesses oligárquicos; com os capitais acumulados pela lavoura, principalmente do café, o país iniciava seu processo de industrialização e seguia em frente. Mas os homens considerados “cidadãos brasileiros” ainda eram uma parte pequena do povo que, no dia-a-dia, fazia o Brasil.

Envolvidos no torvelinho das ambições expansionistas de caudilhos como o argentino Rosas, o uruguaio Oribe e o paraguaio Solano López, criamos finalmente um exército e uma marinha durante as longas guerras do Prata e do Paraguai. Mas não nos formamos apenas através de crises políticas e diplomáticas. O embate das idéias, através da imprensa, dos debates parlamentares e dos comícios, nos fez amadurecer. Aprendemos também a nos ver melhor através do olhar dos estrangeiros, como os artistas da Missão Francesa, os cientistas austro-bávaros trazidos pela imperatriz Leopoldina, os muitos viajantes e historiadores que passaram por aqui. A explosão romântica, na segunda metade do século XIX, ajudou a construir a nacionalidade, através do indianismo das poesias de Gonçalves Dias e dos romances de José de Alencar, da poesia abolicionista de Castro Alves, das telas históricas de Pedro Américo e Vítor Meirelles e das óperas de Carlos Gomes. Percebemos, nesta época, que os brasileiros não podiam ser apenas os descendentes de brancos europeus.

Da Guerra do Paraguai saímos para os inflamados debates dos movimentos republicano e abolicionista. Neste, negros e brancos se colocaram lado a lado pela extensão da cidadania; lutas legislativas, protestos e insubordinação generalizada, com fugas em massa de escravos, resultariam na aprovação da Lei Áurea. A grande mácula que pesava sobre todos nós, de sermos a última nação escravista do mundo, chegava ao fim, em 13 de maio de 1888, com a assinatura, pela princesa Isabel, de uma lei com menos de vinte palavras: “1º – É declarada extinta a escravidão no Brasil desde a data desta lei. 2º – Revogam-se as disposições em contrário”. Assim, passavam a não existir mais, institucionalmente, diferenças entre os cidadãos brasileiros – todos, a partir daquele momento, faziam parte, legalmente, de uma nação “una e indivisa. ” Com este número especial, Nossa História oferece ao leitor um painel inédito, ilustrado com rara iconografia, de fatos, cenários, idéias e personagens que marcaram o longo processo de formação do Brasil. Homens e mulheres que não hesitaram até mesmo em colocar a causa da pátria acima da própria vida.