O selvagem lírico que conquistou o mundo
Quando compunha suas óperas italianas, Carlos Gomes fazia música brasileira ou não? A questão, se já atormentou e provocou numerosos debates entre músicos, não é fundamental. “Carlos Gomes escrevia na linguagem internacional da ópera de seu tempo – e, como afirmava até um nacionalista como Guerra Peixe, foi dos compositores brasileiros que melhor dominaram o métier”, diz o crítico Luiz Paulo Horta.
O compositor que conquistou os palcos do mundo inteiro e levou a música brasileira, praticamente sem tradição alguma, ao reconhecimento internacional tinha como destino traçado ser um músico de província. Era esse o desejo de Manoel José Gomes, regente da banda de música de Campinas: que Antônio Carlos Gomes (1839-1896), como todos os seus filhos homens entre 26 rebentos, integrasse o grupo musical doméstico, uma espécie de Família Dó-Re-Mi erudita e avantajada, produto dos quatro casamentos do patriarca. O rapaz, no entanto, tinha grandes sonhos. Aos 23 anos, para desgosto do pai, saiu do interior paulista rumo ao Rio. Levava uma missa e outras composições na bagagem. A Corte seria uma etapa intermediária da viagem que o levaria aos grandes templos da música lírica.
Carlos Gomes iniciou-se no meio numa época em que ainda se dançava segundo os compassos românticos. O jovem estudante, aceito no Conservatório do Rio, seguiu os passos do momento. Inspirado, dono de uma genuína cabeça musical, escreveu cantatas e duas óperas – “A noite do castelo” e “Joana de Flandres” – cuja repercussão levou d. Pedro II a lhe conceder uma bolsa de estudos na Itália. Para lá partiu Carlos em 1863, com uma única exigência do monarca: compor uma obra. Não fez por menos. Escreveu “O guarani”, ópera baseada no romance de José de Alencar. “O Guarani” estreou no Scala de Milão em 19 de março de 1870 (“data histórica da música brasileira, sua primeira afirmação internacional”, segundo Horta), com imediato sucesso de crítica e público, alçando o exótico brasileiro, freqüentemente descrito como “selvagem” na imprensa especializada italiana, a sócio do fechado clubinho dos compositores de fama internacional.
Giuseppe Verdi, que Carlos Gomes admirava desde os tempos de Campinas, aplaudiu o resultado: “Este rapaz tem gênio. Ele começa por onde eu termino”. A frase, evidentemente elogiosa, encerrava “conotações sardônicas”, segundo o crítico Wilson Martins, autor da portentosa “História da inteligência brasileira”: a corrente musical à qual o brasileiro aderira, precisamente por estar no apogeu, já iniciara seu período de declínio histórico. Os sons criados por Wagner anunciavam novos tempos, tempos que Carlos Gomes, de certa forma, se recusara a viver – inicialmente, a bolsa ofertada pelo imperador tinha como destino a Alemanha; fora ele a preferir a Itália, contando, para tanto, com a ajuda da imperatriz, italiana.
Os italianos souberam reconhecer a adesão do compositor à corrente verdiana do drama lírico. Entre 1870 e 1879, Carlos Gomes só perdeu para o próprio Verdi em número de apresentações no Scala de Milão, trampolim para as principais casas de ópera do mundo. Compôs várias outras óperas, entre elas “Fosca” (que muitos críticos consideram sua obra-prima e que ele próprio via como o momento maior de sua produção) e “Salvatore Rosa”. Sua pitoresca casa em Lecco tornou-se um ponto de encontro para intelectuais e artistas milaneses: a Villa Brasilis, palacete que mandara construir e no qual araras, macaquinhos e papagaios davam o tom da terra natal, tornou-se uma referência tão forte que até hoje funciona ali o conservatório da cidade. Ganhou muito dinheiro, mas perdeu-o no mesmo ritmo allegro.
Estava doente ao voltar ao Brasil, em 1895, para dirigir o Conservatório de Belém do Pará, então vivendo o boom da borracha. Quando morreu, alguns meses mais tarde, a música brasileira, por meio de sua obra, tinha se tornado uma ilustre conhecida. E Heitor Villa-Lobos, algumas décadas depois, se encarregaria de desfazer qualquer dúvida que porventura restasse.