Cruce Andino – Travessia sem fronteira

Era uma vez um pequeno felino de um mês e meio, cor de café com leite, que vivia preso em uma jaula na qual mal podia espreguiçar-se. Fora capturado na região dos lagos andinos, em algum ponto entre o Chile e a Argentina, e parecia destinado a viver como um animal doméstico ou, pior, exibido como atração turística. Mas o roteiro foi corrigido a tempo. Com um mês e meio, foi comprado por um bom samaritano que só queria devolvê-lo aos bosques. Mas não foi mais embora. Adotou seu libertador e passou a acompanhá-lo por toda a parte. Passeava de carro, nadava junto, dava a patinha — que logo virou patona —, deitava a cabeça sobre a perna dele para descansar. Comia do bom e do melhor. Embora fosse um puma, animal retratado como perigoso nos documentários, nunca provocou um arranhão sequer.

Tanta confiança só se concede a quem quer bem aos animais, conversa com eles, não os teme. É o caso de Alberto Schirmer Roth, um senhor acostumado a cuidar de pássaros doentes, como os 13 condores que já passaram pela sua “enfermaria” antes de voltar a voar, e descobrir lugares onde seres humanos nem sonham existir.

Don Alberto, como é conhecido, vive na Região dos Lagos, em um vilarejo chileno minúsculo chamado Peulla, de cento e poucos moradores, ponto central da travessia entre Puerto Varas, no Chile, e Bariloche, na Argentina, feita parte de barco, parte de ônibus. Dono dos dois hotéis do local e de toda a estrutura turística do “Cruce Andino”, ele é uma espécie de guardião deste que é um dos lugares mais deslumbrantes da América do Sul.

O viés turístico da travessia dos lagos iniciou em 1913 pelas mãos de Ricardo Roth, seu avô – depois que sua utilidade na exportação de lã caiu em desuso. Chegou a ter 60 mil turistas por ano em 2007, sendo cerca de 30% brasileiros.

Mas a crise econômica, a gripe A (H1N1) e o terremoto de 2010 fizeram o número despencar pela metade. As pessoas não sabem o que estão perdendo.

Não conhecem, por exemplo, a cor de esmeralda do Lago de Todos os Santos, em uma tonalidade que quase chega a confundir o limite entre a água e a mata; a força da água que despenca nos Saltos do Petrohué; os montes nevados que se revelam pelo caminho; ou a vegetação exuberante dos bosques, que vai alaranjando e avermelhando conforme se olha mais para o alto dos paredões que margeiam o lago. Os animais, discretos, não costumam dar o ar da graça. Mas não é tão difícil avistar pássaros como o condor, o martim-pescador e o chucao, o tenor da região, pequenino e de cordas vocais potentes, com um repertório vasto de melodias.

Parte dessa boa impressão depende de um céu limpo e um sol raiando, que intensifica os contrastes e ajuda a aplacar o vento frio. Não é tarefa fácil em uma região onde chove 3.500 mm ao ano, bem mais que na Amazônia. Mas uma boa pedida é evitar os meses de inverno, os preferidos dos brasileiros por causa da neve.

Independentemente da estação, a dica mais importante é não fazer a travessia em um único dia. De setembro a abril, quando os dias são mais longos, é possível sair de Puerto Varas pela manhã e chegar a Bariloche para o jantar. Mas é um desperdício não pernoitar em Peulla e curtir o aconchego do vilarejo e da paisagem que o cerca; cavalgar cruzando rios com água quase no pé; praticar arvorismo; admirar a boiada pastando no prado extenso ao pé da montanha; conhecer a escolinha onde 11 alunos são divididos por baias em uma única sala, de acordo com a idade; e apreciar um anoitecer de outono, com o céu ainda azul emoldurando a montanha já completamente escura.

“Aqui, os turistas relaxam. Há senhores de 80 anos que fazem arvorismo”, conta Don Alberto. Mas muitos param só para almoçar e seguem viagem. “As pessoas andam viajando que nem japoneses. Passam tão rápido pelos lugares que depois passam o ano todo discutindo com a família de onde são as fotos. Isso não é turismo.” Claro que ele tem interesse em travessias mais longas, mas Alberto não é do tipo marqueteiro que usa jornalista para mandar recado e, afinal, sua opinião faz sentido.

A primeira vista da travessia é a do vulcão Osorno (2.660 metros de altura), inativo há quase dois séculos e deslumbrante desde sempre, fazendo lembrar o Monte Fuji, no Japão. O formato cônico quase perfeito deve-se às 40 crateras situadas ao redor da base. As erupções ocorreram ali, o que preservou o topo.

Depois aparece outro vulcão, cujo nome não poderia ser mais autoexplicativo: Puntiagudo (2.493 metros). Mais pontudo que o Osorno, tem o topo irregular e um pouco inclinado, qual uma Torre de Pisa dos Andes. Há quem diga que ficou assim após o terremoto de 1960. Outros afirmam que foi a última erupção, ocorrida bem antes. Viagem tem muito disso. Nativos contam histórias com uma certeza que parece protocolada em cartório, mas sempre pode surgir um “ou não”. É o caso do chucao, que uns dizem ter sete tipos diferentes de cantos, outros 24… Seja como for, o que importa é que o canto deste pajarito é a trilha perfeita para apreciar os vulcões e toda a paisagem.

O monte Tronador também dá o ar da graça. Tem quase 3,5 mil metros, mas tamanho não é necessariamente documento. Mais vale ter um bom ponto de observação. Prova disso é a cascata Yefe. De longe parece um filetinho d’água, mas peça para o capitão do catamarã passar perto e repare no capricho de seus inúmeros degraus. “Gosto de todo o trajeto, porque a cada dia que passa, ele é diferente. Hoje tem aquelas nuvens ali, à meia altura”, diz o capitão Jorge Araya, 65 anos, apontando na direção do vulcão. “Amanhã, podem não estar ali, ou pode ter caído mais neve.”

Antes dos alemães, nem mesmo os mapuches

Havia um tempo em que a região dos lagos era tão inóspita que nem os nativos viviam ali, embora mapuche signifique “gente da terra”. Para povoá-la, foram recrutados colonos da então Confederação Germânica, que vivia uma revolução – a Alemanha propriamente dita ainda não existia. Como em toda guerra, muitos queriam fugir. E como o clima no sul do Chile tem um ar germânico, o governo de Manuel Montt resolveu incentivar a migração.

“O Chile precisava de gente para colonizar a região e os alemães precisavam de trabalho e dinheiro, então ganharam terras aqui”, diz Pedro Felmer, dono do museu Antonio Felmer – Nuestras Raices. “Quando chegaram, descobriram que não havia nada além de bosque”. Era o ano de 1850. A Revolução Industrial se espalhara pelo mundo, a carga horária nas fábricas caía para perto das 50 horas semanais (um avanço naqueles tempos), Darwin publicara A Origem das Espécies e até o Brasil inaugurava sua primeira ferrovia, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Enquanto isso, os colonos alemães trabalhavam dia e noite para construir suas casas em um terreno inóspito e aprendiam estratégias rudimentares de sobrevivência, como fazer carne de sol, por exemplo.

“Muito simples. Basta cortar a carne em fatias finas, salgar e pendurar ao sol ou fumaça para secar”, ensina um nativo, quando os recém-chegados se deram conta de que não havia sequer recipientes grandes o suficiente para salgar carne e armazená-la. Quando aportaram ali, em um veleiro, os primeiros 70 colonos descobriram que não ficariam exatamente onde esperavam, que não há nenhuma vila à beira do lago e o único abrigo disponível é um galpão no meio da mata, sem divisória alguma e sem forro. Foram obrigados a racionar comida, fazer fila para tomar o desjejum, realizar trabalhos penosos e enfrentar várias outras privações e provações.

Mas o povo germânico é batalhador, criativo e caprichoso, como provam os museus da região e o legado arquitetônico, gastronômico e cultural. Sem falar na saga de Ricardo Roth, filho de um paleontólogo suíço “importado” pelo governo argentino no final do século 19.

Ricardo é um aventureiro que se mandou de casa após concluir os estudos. Não entendia nada do campo, mas queria conhecer a natureza into the wild. Percorreu toda a Patagônia e instalou-se na região dos lagos, onde implantou a primeira turbina para geração de energia hidrelétrica da região e criou a primeira estação de rádio, que os moradores sintonizavam para saber, por exemplo, o número de passageiros a bordo de um barco.

Era um visionário, lembra o neto Alberto. “Quando chegou aqui, as pessoas queimavam os bosques para fazer pasto. Ele entrou em pânico porque o local ia perder o valor turístico.” Recorreu ao explorador argentino Francisco Pascasio Moreno, que o havia convidado para participar das discussões fronteiriças entre Chile e Argentina. Perito Moreno, como era conhecido, sugeriu que ele lutasse pela criação do primeiro parque nacional do Chile – o que Ricardo, homem refinado e culto, conseguiu em 1925, após muito lobby em Santiago. O parque leva o nome do homem que coordenara a entrega de terras aos colonos, Vicente Pérez Rozales.

Seu filho, Rui Roth, foi o primeiro homem a chegar ao cume do Puntiagudo, e morreu na ocasião. Gastou boa parte do gene aventureiro do velho Ricardo, deixando para Alberto um legado diferente. “O que eu mais aprendi com meu avô foi a tranquilidade com que fazia as coisas e como as planejava”. Além do olhar apurado e do faro fino para os negócios e para a vida selvagem.

O olhar serve para zelar pelo meio ambiente. “Enxergo um pedaço de papel à distância, porque percebo que aquela cor não pertence à natureza.” E o faro, para apreciar lugares que poucos conhecem ou dão o devido valor, como o Cerro Rigi, para ele o lugar mais interessante do Cruce Andino, bem na fronteira. “Você sai do lago e sobe 700 metros por uma trilha. Lá em cima, vê de perto as flores de altitude, que crescem em várias cores, com aromas incríveis. Você sente cheiros que nunca sentiu e ficam gravados na memória. Quando você vê de novo a mesma planta, já sabe o aroma que vai sentir.”

Esta montanha só conhece quem vai com tempo para perder e se perder. Ou, eventualmente, quem descola uma carona no avião-anfíbio de Don Alberto. Mas quem viaja no cronograma corrido da travessia também volta para casa com a memória farta de boas lembranças.

Um bom exemplo é o trecho entre Peulla e Puerto Frias, a primeira parada no lado argentino. A trilha mais fechada, com cachoeiras e vegetação densa, muita samambaia se derramando sobre o caminho, lembra um pouco a nossa Mata Atlântica. Mas há inúmeras peculiaridades, como o alerce (árvore que os alemães usaram e abusaram na colonização, e agora não pode mais ser derrubada, pois cresce apenas um centímetro a cada 15 anos); a amancay (flor de verão sagrada para os mapuches, que tinham hábito de batizar com este nome suas filhas mais velhas); a lenga (planta com folhas amarelas e laranjas, que ganham tom avermelhado no outono antes de cair); além de animais como o puma, veado, javali, bisão e, mais fáceis de ver e ouvir, os pássaros.

Já Puerto Frias, com sua vista bucólica do Lago Frias, é o lugar ideal para um pintor fincar seu cavalete e esquecer da vida, principalmente se o céu estiver azul e todos os matizes do bosque refletidos na superfície. Quem sabe um dia desses algum artista plástico aviste o puma de Don Alberto, que após cinco anos vivendo praticamente como um gato de estimação, resolveu emancipar-se e nunca mais voltou para casa. “Sempre lembro dele, eu sofro. Vivi todas as etapas até a maturidade”, lembra o emotivo senhor de 72 anos. “É um animal sentimental.”

Desconfio que Don Alberto seria capaz de dar seu hotel, com todos os hóspedes dentro, por uma tela bem pintada do felino, como uma espécie de prova de que ele continua se espreguiçando livremente pelas paisagens andinas. O nome dele é Pangui. Quer dizer puma, na língua mapuche.

PUERTO VARAS: PARA CHEGAR LÁ

A primavera abre a temporada de turismo na região dos lagos no Chile, incluindo o Cruce Andino. Siga nossas dicas e se maravilhe com uma das regiões mais bonitas da América do Sul

DICAS BÁSICAS

Como chegar

O aeroporto mais próximo de Puerto Varas é o de Puerto Montt. A LAN tem voos de diversas capitais do Brasil para lá (via Santiago). De São Paulo, a tarifa custa a partir de US$ 439.

Para passear

Puerto Varas é uma cidade pequena. Um dia de caminhada sem muito esforço é suficiente para conhecer o calçadão, os píers à beira do lago e os casarões históricos. Agências locais oferecem passeios de um dia, como os citados ao lado.

A travessia dos lagos

A travessia custa US$ 230 por pessoa, feita em um ou dois dias, pois o valor inclui apenas o transporte, feito em catamarã e ônibus. Em dois dias, a pernoite é em Peulla. A viagem num único dia parte de Puerto Varas às 8h30 e chega a Bariloche por volta das 20h. De maio a agosto não é possível fazer dessa forma porque escurece cedo.

SETE DICAS PARA CURTIR PUERTO VARAS

1. Frutillar é a cidadezinha dos aposentados de origem alemã, cheia de placas de kuchen (bolos), casinhas meigas com cortinas bordadas e flores por todos os lados. Típicas referências germânicas, assim como o gosto pela música clássica, fazem-na sede do moderno Teatro del Lago.

2. De Puerto Varas até a base da estação de esqui, no Vulcão Osorno, onde se pega o teleférico, leva pouco mais de uma hora de carro. Do alto, tem-se uma linda vista do Lago Llanquihue, que parece se perder na névoa do horizonte, ou nas águas do Pacífico.

3. A desova dos salmões ocorre em abril. Não é um espetáculo como os da TV, com peixes galgando cachoeiras e ursos faceiros à espreita, mas para quem gosta de fenômenos naturais, vale uma espiada. Os salmões, após nadar por seis meses para voltar ao local onde foram gerados e procriar, debatem-se contra a correnteza do rio Petrohué. A fêmea põe os ovos, o macho fecunda e, missão cumprida, ambos morrem, o que deixa as margens cheias de carcaças. Fica perto do acesso ao Osorno.

4. O Valle del Callao fica no pé do vulcão Puntiagudo, e pode ser alcançado depois de uma cavalgada de duas horas. Ali vivem os Altamirano, que mantêm banheiras termais em um ambiente com apenas três paredes, para que se tenha uma vista ampla do rio. O turista pode acampar ou ficar na hospedaria da família, desfrutando a comida que goza de boa reputação, preparada por dona Inês.

5. Puerto Varas é um bom local para praticar esqui, rafting, trekking, arvorismo, cavalgada e pesca esportiva, entre outros esportes. Para quem está em forma, a pedida é o canyoning no rio Blanco, que termina num rapel de 34 metros de altura.

6. Sente no lado esquerdo do avião para ir de Santiago a Puerto Montt e no lado direito para voltar, e você verá a Cordilheira dos Andes e seus picos nevados. Deixe a câmera à mão.

7. O tempo é insano. Você sai do hotel superagasalhado e, se o dia estiver ensolarado, em alguns momentos uma camiseta é suficiente. Na região, chove mais do que na Amazônia. O ideal é ter sempre à mão uma roupa impermeável, especialmente para visitar os Saltos do Petrohué. Assim é possível chegar perto da cachoeira sem medo de se molhar, de frente para o vulcão Osorno, fechar os olhos e deixar a água respingar no rosto e o ruído penetrar na alma.

PUERTO VARAS: PARA SABER MAIS

Onde dormir

Puerto Varas oferece hospedagem para todos os bolsos, de albergues na faixa dos R$ 20 a opções 5 estrelas. O custo-benefício dos principais hotéis é bem razoável. Quartos duplos variam de R$ 200, no Cabañas del Lago, a R$ 310, no Cumbres Patagónicas, ambos com vista privilegiada, chefs de mãos cheias e ambiente acolhedor. O Cabañas é um 4 estrelas rústico e charmoso, com aroma de madeira por todos os cantos. Até o mouse pad é feito de madeira. O Cumbres é um 5 estrelas mais requintado, mas sem ostentação. Tem um pub providencial para uma cidade carente de vida noturna. Outras opções são o Solace (cerca de R$ 260 a diária) e o Hotel Patagónico (R$ 310 a diária, em média). Para um ambiente mais familiar e econômico, a pedida é o Guesthouse, Bed and Breakfast, numa casa histórica, com banheiro privativo e café da manhã incluído por R$ 130. Em Peulla, a opção é o Hotel Natura, novo em folha, que cobra R$ 300.

Links úteis:

Rafting
CanyoningCaiaque
Pesca 1Pesca 2
CavalgadaTrekking
Esqui
Travessia dos lagos

Flores em tudo que eu vejo

Puerto Varas é a cidade das rosas e casas pontiagudas de estilo germânico, com ripas de madeira que mais parecem orelhas de cão basset. A paisagem dominante é do Lago Llanquihue (877 km², pouco maior que Campinas, no interior de São Paulo), com o vulcão Osorno ao fundo. Pode ser apreciada do píer e do monte Philippi (homenagem ao imigrante alemão Bernardo Philippi). É charmosa e bem servida de hospedagem, serviços e alimentação. Vida noturna não é o forte da cidade.

Sushi de salmão com abacate: não tenha medo

• Se você acha que já experimentou todas as iguarias da gastronomia japonesa, prepare-se. A comunhão entre o salmão fresquíssimo, criado nos lagos da região, e o abacate, que os chilenos chamam de palta e usam em todos os pratos, é algo para comer de joelhos. Basta trocar a alga insossa do sushi tradicional por fatias firmes de abacate. O Chile é um lugar especial para comer frutos do mar. Também vale a pena experimentar machas a la parmesana, espécie de marisco gratinado, e chupe de jaiva, torta recheada com pata de caranguejo e aji (a pimenta andina), entre outros ingredientes.

• Na seção “vegetarianos, perdoainos”, há o cordero al pallo (cordeiro crucificado), o javali no rolete e o curanto, mix de frutos do mar, frango e costela de porco enterrados sobre pedras quentes e cobertos com folhas.

• Bebidas: do vinho e do pisco sour, é desnecessário falar. Mas uma boa dica é o murta sour, que combina uma fruta de bosque da região ao tradicional coquetel feito com pisco e limão. Se estiver no restaurante Dane’s, em Puerto Varas, faça uma concessão às cervejas artesanais, que acompanham bem as deliciosas empanadas fritas.

• “Sou de Santiago, mas a cozinha mais rica do Chile é a do sul”, diz o sub-chef do hotel Cabañas del Lago, Luis Felipe Urizar.
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