Patagônia Chilena

A natureza pode nos deixar impressionados diante de paisagens esplêndidas, como se ela nos presenteasse com a sua beleza estonteante. Mas quando nos deparamos com a sua violência e fúria, entendemos que também devemos respeitá-la. Um cruzeiro pela Patagônia Chilena mostra exatamente isso. Feito de contrastes, é um saboroso passeio que nos leva a navegar pelo sul do continente latino-americano. Nesse roteiro, partimos da pacata ilha de Chiloé, cujo nome significa “lugar de gaivotas” e é conhecida pela arquitetura de palafitas, passamos pelos fiordes do arquipélago dos Chonos, chegando à fabulosa laguna glaciar de São Rafael e regressando pela devastada cidade de Chaitén.

A viagem começa com um coquetel de boas-vindas no bar do navio Mare Australis. A confortável embarcação de quatro andares tem capacidade para 130 passageiros, mas, com apenas 64 nessa semana de novembro, criou-se um ambiente quase intimista. A maior parte dos viajantes era formada de chilenos, havendo alguns brasileiros, espanhóis, um alemão e um suíço. Nem nos demos conta de que, enquanto a conversa rolava num jocoso portunhol, já tínhamos zarpado, cortando as águas a 18 km/h ou 10 nós, a caminho da ilha Jéchica, no arquipélago dos Chonos.

O melhor de um cruzeiro é despertar e olhar pela janela. Mesmo que a paisagem não mude muito de dia para dia, como foi o caso desta viagem, há algo de especial em estarmos como que voando de frente para montanhas de densa vegetação que nos saúdam. Aqui e ali, boias flutuando e formando um quadrado no mar indicam as fazendas de criação de salmão. E ao abrir as cortinas, veem-se ao longe lobos marinhos rebolando no mar.

A primeira noite foi a única na qual o barco abanou com força, atrapalhando o sono. “Eu senti como se estivesse de volta ao terremoto e depois não pude mais dormir”, comentou a passageira Johanna Mella, de 33 anos. Ela se referia ao terremoto que assolou o Chile em fevereiro de 2010, de magnitude 8.8 na escala Richter, cujo epicentro foi a poucos quilômetros da cidade de Concepción, onde ela vive. Mais tarde nesta viagem, viríamos a aprender mais sobre os desastres naturais chilenos.

Passamos pelo arquipélago das Guaitecas, navegamos o Golfo Corcovado rumo ao canal Pérez Norte e lançamos âncora na ilha de Jéchica. Para chegar à terra firme, íamos em barcos infláveis com motor, zarpando pelo fiorde. A palavra “fiorde” provém do escandinavo fjord e significa entrada do mar na terra causada por glaciares. A Noruega é o país mais conhecido pelos seus fiordes.

Justo quando pensava que não é preciso ir à Europa para admirar tanta beleza, olhei mais adiante e uma parte da vegetação da montanha estava sem vida. Em pequenos grupos fizemos uma caminhada e o guia Marcelo Torres, que também é professor de história e geografia, explicou que há 50 anos as árvores de vagaroso crescimento haviam sido queimadas para extração da madeira de ciprés, material caro por causa de sua permeabilidade e durabilidade. Hoje em dia, a ilha foi concedida ao empresário Luís Chadwick para conservação da fauna e da flora.

Mas o homem também marcou esse local de outra forma. Saindo pela margem e entrando pelo fiorde vimos uma lembrança deixada pelos Chonos indígenas, povo extinto no final do século 19: pedras enfileiradas delimitando uma área do fiorde – uma técnica engenhosa de pesca, pois, quando a maré baixa, a água escoa e os peixes ficam presos sem conseguir passar para o lado mais próximo do mar. Andamos até o sereno lago Jéchica por toras de madeira e uma terra fofa tipo almofada, formada por um musgo chamado turbera. Nesse passeio, fui conversando com os pais da menina Clarinha, de apenas um ano, que a todos sorria e oferecia suas bonecas. “Nós viajamos muito, sempre que podemos”, comentou o pai da Clara, o alemão Jürgen Böhl, de 36 anos, que exalava felicidade paternal. “Mas, este ano, trouxemos a nossa filha e viajar assim é mais descontraído. Sempre sabemos quando vamos ter leite quente e uma caminha para deitá-la. É bem mais fácil que um mochilão improvisado, como fazíamos antes.” Dando a mão ao marido, Lilian, chilena radicada na Alemanha, aproveitou para acrescentar: “É sempre mais seguro, mas é também uma aventura”.

Pelo caminho encontramos uma pequena planta carnívora endêmica, a drosera uniflora, e plantas de canelo, que são adoradas pelo povo indígena do sul do Chile e da Argentina, os mapuche, por suas propriedades curativas e vitamínicas.

Conhecida por seu inverno rigoroso, a Patagônia é bem mais bonita nos meses de janeiro e fevereiro. “Não só temos mais animais marinhos como também a orca e a baleia azul, que migram para o sul do planeta para se alimentar”, explica Marcelo, acrescentando que ainda desabrocham as flores mais vistosas, como o morango-do-diabo e brincos-de-princesa. Ainda nesta época, avistam-se mais aves porque as crias já podem voar. Das 450 espécies de aves existentes no Chile, cerca de 250 podem ser admiradas na Patagônia.

Depois do cordeiro assado servido para almoço na reserva natural, voltamos a navegar. Seria um resto de dia livre para absorver a paisagem, descansar ou fazer parte das atividades a bordo que, aliás, todos os dias aconteciam. Na grade de eventos não faltavam palestras sobre a fauna e a flora (às vezes, apagando a surpresa do que iríamos ver), jogos de bingo, karaokê e aulas de nós de marinheiro. As refeições servidas a bordo eram também quase vistas como uma atração: o salmão com molho de alcaparra e mil folhas; o lombo ao molho três queijos com batatas crocantes; o strudel com sorvete e outras maravilhas faziam as delícias dos passageiros.

O apogeu da beleza

Gabriela Mistral, a chilena Prêmio Nobel de literatura de pseudônimo, escreveu: “Uma bela paisagem, uma linda jornada, um livro seleto. Que mais necessitam para serem felizes? O sol resplandece no interior”. Apesar de amanhecer nublado, a euforia estava no ar naquele que era o dia mais esperado de todo o roteiro.

“Quero ver os glaciares antes que eles derretam!”, exclamou Romini Richard, jovem oriunda de Santiago que passeava com o namorado e os pais. Numa palestra dada a bordo, o controverso caso do aquecimento global veio à tona. Foi dito que há a probabilidade de que estejamos passando pela transição de uma fase de calor na Terra, mas que isso se sucede em ciclos naturais, nada tendo a ver com a poluição. Claro que isso não invalida a necessidade de manter o nosso planeta limpo.

Para muitos nesta viagem, ver a laguna São Rafael e o hipnótico glaciar pincelado de azul celeste é a concretização de um sonho. O tom azulado dos glaciares é intrigante e a explicação de não serem brancos como a neve deve-se à sua densidade. Quanto mais densa a neve, menos se filtram os raios de luz e a cor azul é, de todo o espectro, a que mais penetra, dando a tonalidade que admiramos.

No café da manhã, soou um aviso pelos alto-falantes: “Atenção, senhores passageiros. Dentro de momentos, poderão ver a bombordo, no lado esquerdo do navio, a laguna São Rafael”. Como molas, levantamos das mesas e corremos para as janelas, suspendendo a respiração. Naquele primeiro instante, houve um silêncio de rejúbilo e adoração, seguido por profundos “aahhhs…”.

Era uma visão absolutamente majestosa, e entre os clichês (“Ver isto me faz sentir tão pequeno”) e questões mais estrambólicas (“Será que fico com a língua colada se tentar lamber o glaciar?”), todos sorriam como crianças em dia de Natal. A partir daquele momento, nada nem ninguém podia tirar essa visão real da nossa experiência de vida. Com energia redobrada, colocamos os coletes salva-vidas e saltamos para os barcos infláveis.

Os icebergs formavam esculturas geladas que se erguiam da água e a lagoa parecia uma gigantesca caipirinha, com pedaços de gelo soltos na água. Ziguezagueando pelos icebergs, por vezes o barco inflável encravava no gelo formado à superfície da água e então tínhamos de dar a volta. Quando numa dessas vezes o motor fez um barulho estranho, olhamos todos apreensivos para o guia Marcelo. “Não se preocupem. Enquanto não escutarem “pfffff” do ar do inflável saindo, estamos todos bem”, falou em trejeito de graça. “Reparem”, ele continuou, talvez para nos distrair, “podem ver ali naqueles montes do lado da geleira formados por sedimentos rochosos, que chamamos de ‘morenas’, as marcas da recessão do glaciar.” Ele apontou para alguns números pintados em tinta branca nas “morenas”. “Observem que desde 1979 o glaciar recuou quase 400 metros.”

Mais adiante, paramos em frente a um iceberg para que pudéssemos tocar a dura e gélida superfície. Dali, seguimos para perto de cascatas nas “morenas” e passamos por baixo de uma delas para entrar numa pequena caverna, mais pela emoção de nos molharmos do que por outra coisa. Minutos depois, um ruído veio de um iceberg e, de repente, escutamos um estouro como o som de uma bomba, e um bloco de gelo formou ondas no mar. Esse fenômeno é causado não pelo aquecimento global, mas pelo acúmulo de gelo no topo, que faz pressão para que algumas pontas quebrem. Um espetáculo inesquecível.

Não fazia tanto frio assim (eram 8 ºC), mas tocávamos no gelo sempre que podíamos e os salpicos da cascata já nos faziam congelar. Até por isso, foi bom voltar para o barco e com um whisky ou chocolate quente (ou os dois misturados) dizer “saúde” ao glaciar São Rafael, um dos mais altos da Patagônia.

Cara ou coroa

No dia 2 de maio de 2008, o vulcão Chaitén entrou em atividade naquela que seria a erupção mais violenta registrada até hoje. Rolos de cinza e lava envolveram toda a cidade de Chaitén, engolfando tudo à sua passagem, desviando o percurso do rio e expulsando os cerca de 7.500 habitantes. A evacuação foi rápida e só uma pessoa faleceu de ataque cardíaco.

Quatro anos depois, a cidade segue cicatrizando. Cerca de 900 pessoas voltaram para casa depois do incidente e mais 200 vieram de todo o Chile para ajudar na reconstrução da cidade. O vulcão, por sua vez, continua ativo, ainda que soltando esporadicamente fracos suspiros.

Naquela tarde dominical, último dia do cruzeiro, fomos recebidos em Chaitén por uma banda local que tocava e dançava a típica música chilena, a cueca (aqui não escaparam os comentários divertidos dos passageiros brasileiros).

As calorosas boas-vindas mostravam que aquele é um povo guerreiro, que luta perante a adversidade evidente: diante dos nossos olhos, as vísceras de algumas casas estavam estripadas, com pedaços inteiros arrancados, muitas quase submersas em cinzas. Um espesso nevoeiro envolveu a cidade nessa tarde. Parece que o clima resolveu mostrar por fora o assombro que sentíamos por dentro. Havia pouco vestígio dos espaços verdes de Chaitén, mas o que insistia em sobreviver era por rebeldia. Um sinal de esperança.

Na lojinha de beneficência da cidade, entre artesanato e doces, havia potinhos com cinzas do vulcão à venda. Caminhamos pelo local e pelo parque Pumalín, onde novamente a natureza mostrou as duas faces da moeda. A parte destruída exibia árvores queimadas e nuas. Mais adiante, intocadas pelo vulcão, cachoeiras e vegetação saudável, onde frondosas e milenares árvores de alerce se mantêm intactas, ao som do lindo canto melódico das aves Fío Fío.

A imprevisibilidade da natureza chilena, a recente desvalorização do minério e a crise econômica mundial têm afastado os turistas. No final da nossa viagem, muitos voos partindo de Puerto Montt haviam sido cancelados por cinzas vulcânicas, desta vez do vulcão Puyehue, mantendo alguns passageiros presos na cidade por mais dias do que o previsto. Em qualquer viagem, imprevistos podem acontecer. Cabe ao bom viajante saber lidar com eles. No caso de um país belíssimo como o Chile, ficar mais alguns dias porque não há voo é, de certa forma, apenas uma boa desculpa para não voltar na data marcada.

Siga nossas dicas e descubra o extremo sul do continente a bordo de um navio, passando por fiordes estreitos, glaciares imponentes de cor azulada e cumes eternamente nevados. A natureza selvagem da Patagônia, embora já ameaçada pela ação do homem, ainda preserva uma das áreas mais inóspitas – e belas – de todo o planeta

ESSENCIAIS

Como chegar

O aeroporto mais próximo de onde partem os cruzeiros para a Patagônia chilena é o de Puerto Montt. A Lan faz voos desde São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro, com conexão em Santiago, por cerca de R$ 1.200.

Quando viajar

Os meses de janeiro e fevereiro são ideais para visitar a Patagônia, pois nessa época do ano a fauna e a flora são mais abundantes. As temperaturas também estão amenas (entre 5 ºC e 15 ºC), mas há dias de vento forte e chuva. Isso não significa que você deva deixar de lado o período entre setembro e abril, quando os preços baixam e o fluxo turístico é menor.

O que levar

Os passeios fora do barco, sobretudo aos glaciares, pedem roupas adequadas, como calça e jaqueta impermeáveis. Botas de trekking são indicadas, e confortáveis, para os dias de caminhada. Os mais friorentos devem levar gorro e luvas. Ter sempre à mão protetor labial, óculos escuros e protetor solar é uma boa ideia, pois a neve reflete os raios solares e queima a pele.

Câmbio

Nos aeroportos é fácil trocar dinheiro e a maioria dos restaurantes e táxis aceitam dólares, embora a conversão nem sempre seja favorável.

TRÊS CRUZEIROS PARA ESCOLHER

Mare Australis
*ATUALIZAÇÃO 2013: Cruzeiro suspenso pela Navimag

O cruzeiro Mare Australis, descrito nesta reportagem, faz viagens de cinco dias e quatro noites partindo de Castro, na ilha de Chiloé, passando pela ilha de Jéchica, laguna São Rafael e a cidade de Chaitén. Os preços vão de US$ 1.100 por pessoa em cabine dupla, na baixa temporada, a US$ 1.350, na alta temporada (janeiro e fevereiro). Também há viagens de quatro dias e três noites nos meses de verão a partir de US$ 1.020 por pessoa em cabine dupla. O roteiro é igual ao de cinco dias, porém segue de São Rafael a Puerto Chacabuco, onde os viajantes desembarcam. Os preços citados incluem taxas portuárias, tours com guia, alimentação, estadia e bebidas a bordo.

Skorpios II e Skorpios III

O Skorpios II parte todos os sábados, de setembro a abril, e faz o percurso Puerto Montt-Glaciar São Rafael-Puerto Montt em seis dias, cinco noites. O custo das saídas durante os meses de janeiro e fevereiro é mais alto, a partir de US$ 1.900 por pessoa em cabine dupla. Em março, os valores caem para US$ 1.750. O Skorpios III faz viagens de três noites, saindo de Puerto Natales duas vezes por semana (às sextas e terças), de setembro a abril. O percurso é o de Kaweskar, que passa pelos glaciares Amalia, El Brujo, Calvo, Bernal e Herman. Custa de US$ 1.400, na baixa temporada, a US$ 1.550, na alta. Os preços citados incluem tours com guia, alimentação, estadia e bebidas a bordo (taxa portuária de US$ 25).

Via Australis e Stella Australis

Os navios Via Australis e Stella Australis fazem o roteiro desde a cidade chilena de Punta Arenas até Ushuaia, na Argentina. Quatro noites custam a partir de US$ 1.498 por pessoa em cabine dupla, na baixa temporada. Entre novembro e meados de março, o preço sobe para US$ 1.894. O percurso Ushuaia-Punta Arenas de três noites em cabine dupla custa a partir de US$ 1.124 por pessoa, na baixa temporada, e US$ 1.420, na alta. A partir de setembro, o mesmo passeio pode ser feito em quatro dias a partir de US$ 1.989, exceto em outubro e na segunda metade de março, que custa US$ 1.573. Ambos os navios baixam os preços no início e no fim da temporada (setembro e abril). Os preços incluem tours com guia, alimentação, estadia e bebidas a bordo (taxa portuária de US$ 30).

PARA IR ALÉM

Se tiver dias livres antes ou depois do cruzeiro, vale a pena conhecer Puerto Varas, uma charmosa cidade a 20 km de Puerto Montt onde a paisagem do vulcão Osorno encanta. É um bom lugar para passear na beira do lago Llanquihue ou fazer compras. Também poderá optar por tours de um dia com a agência Cruce Andino. Há diversas opções de roteiros, como subir o vulcão Osorno – que tem neve todo o ano – de teleférico e apreciar a vista panorâmica de Puerto Varas. No inverno, o esqui é a sensacão.

Outra opção é um passeio combinando ônibus e barco, que começa por visitar o parque Saltos de Petrohué, com rochas vulcânicas e cascatas de água turquesa. A viagem segue de barco pelo lago Todos os Santos, conhecido pelo nome Esmeralda por causa de sua cor, rodeado pelo parque nacional Vicente Perez Rosales. Para finalizar, uma visita ao parque ecológico de Peulla levará você a campos de flores e animais como lhamas e alpacas. Se ainda não se cansou de passear, siga para Barriloche, na Argentina.